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26 de junho de 2011

Match Point (2005)

Um filme de Woody Allen com Jonathan Rhys Meyers, Scarlett Johansson e Emily Mortimer.

Movimento. Luzes. Olhares. Ações. Cores. Tudo isso entra numa sincronia tão perfeita tanto na vida real quanto no universo de ficções cinematográficas românticas que a presença da sorte se torna obrigatória. A sorte de um momento, a sorte de um encontro, a sorte de um choque, a sorte de um romance. Há tantas possibilidades em cada segundo que não se pode restringí-las unicamente como necessariedade. O devir de Heráclito é o que move os instantes e a incerteza do ser e do estar. É o movimento do tempo, é a surpresa da vida. E Woody Allen, talvez por começar a respirar novos ares em Londres, aprendeu isso da melhor maneira. É através de uma analogia entre a sorte, entre um momento, entre um romance, entre a burguesia inglesa e entre a obra prima de Dostoiévski que ele cria Match Point e volta a ser tão interessante quanto o Allen de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa.
Chris Wilcott (Jonathan Rhys Meyers) é um jovem irlandês ambicioso de classe média, que teve de se esforçar para conseguir vir morar em Londres. Na capital inglesa, ele começa a trabalhar como um instrutor de tênis e acaba por começar uma amizade com um aluno, Tom Hewett (Matthew Goode). Depois de conversas descontraídas, drinques e convites à ópera, Tom leva Chris para conhecer sua família. Nesse encontro, Chris se apaixona pela irmã de Tom, Chloe Hewett (Emily Mortimer). Quando o relacionamento dos dois se torna mais concreto e as visitas mais constantes, o instrutor de tênis vê sua carreira ser alavancada pelo envolvimento com uma família de tamanho prestígio. Mas, ao mesmo tempo, ele se encontra apaixonado por Nola (Scarlett Johansson), a noiva de Tom.
O romance se encontra em toda a atmosfera. Impregna o ambiente. A preferência por um triângulo amoroso se encontra viva nas obras de Allen, o jogo de amores, traições e paixões. Em seu novo longa, Meia-Noite em Paris, há o argumento de que, com certeza, pode-se amar duas pessoas, mas de maneiras diferentes. Não é diferente nesse filme. Mas aqui as paixões não são paixões, exatamente porque elas possuem nome, e eles são a ambição e a sedução. Chris é o homem que não consegue se apaixonar em cena. Todas as palavras e os carinhos dirigidos suavemente à Chloe beiram o superficial, tentam enterrar um sentimento de paixão para integrar um de respeito. Mas o outro lado não procura respeito, procura o desejo, o toque, o amor que não consegue ser recíproco. Se Chris acha em Chloe uma parceira para a vida ou uma escada para o sucesso, isso está nas interpretações de cada um. Mas ele nunca a amou, ou nunca teria criado tamanho distanciamento. Nola interpreta a luxúria em cena. A fotografia favorece a personagem de Scarlett Johansson em seus movimentos repletos de um sex appeal fortíssimo. Ela consegue roubar a cena por ser uma personagem de beleza incomparável. E é fora de sua prisão conjugal que ele encontra verdadeira felicidade de amar e ser seduzido. Quando Chris se afoga no oceano de paixão em que Nola lhe fisgou inconscientemente, ele encontra o amor que procurava em outros momentos.
Match Point aos poucos se torna um ensaio sobre a hierarquia social. Porquê Chris não consegue manter um relacionamento estável com Chloe, a mulher que ele admira e por quem nutre algo inferior a Nola? Os iguais nasceram para ficar com os iguais? Chloe só deveria se casar com alguém de renome? Ou será que Chris é apenas bastante inquieto para conseguir frear toda a sua existência ao redor de uma única pessoa, sem dar mais chance à sorte, à possibilidade? Há pessoas que não nasceram para se enclausurarem num escritório e sentar, vendo o acaso atingir, inesperadamente, as pessoas do mundo de fora. Os Titãs cantaram sobre isso, "o acaso vai me proteger enquanto eu andar distraído". Mas quando a vida se torna uma rotina, quando você não dá chance à sorte de mostrar sua verdadeira face, o que acontece? Um arrependimento no epitáfio? Woody Allen faz isso em seu roteiro, no mínimo, inesperado. As reviravoltas são constantes porque Match Point tenta se igualar à vida: nunca se sabe o que se pode esperar. Ironias do destino aparecem e tomam o lugar das comédias que apareciam em suas obras anteriores, agora a comédia é rir do existencialismo.
Por fim, os personagens se mostram mais ambiciosos do que vivos. Chris busca na vida uma chance tão grande de ascensão social, lendo grandes livros de literatura e escutando ópera o dia inteiro, se relacionando com uma mulher rica, ele não pode colocar tudo a perder apenas por um sentimento tão comum quanto o amor. Mas o que ocorre é que a vida não dá duas chances e o amor não é assim tão comum. Encha-me de paixões, mas renuncio-as todas por apenas um único amor. E aqui não é o que acontece. Chris dá a sua versão para o acaso e, mesmo perdendo suas chances de felicidade, ele ainda tem grandes chances de ascensão. O grande problema é não se ter um com o outro. Aqui, percebe-se a influência clara da obra Crime e Castigo aparecendo nas telas, trabalhando num exemplo de ação e reação. Interessante como o homem que lê Dostoiévski na tela não se dá conta de que sofre mais sem amor do que sem dinheiro. A vida é repleta de sorte, assim como a paixão. O coração tem muitas razões que a própria razão desconhece.
Jonathan Rhys Meyers está grande em seu personagem, comedido em suas ações, aproveitando bem cada cena para se destacar como o lobo na pele do cordeiro, como o menino vindo dos subúrbios, sem instruções, mas que sabe aproveitar cada chance até não sobrar mais nada dela. E sabe o bastante para não desperdiçá-la. Scarlett Johansson mostra pra que veio sua personagem desde sua primeira aparição: seduzir. E isso ela faz muito bem. O interessante é observar a alma de uma verdadeira apaixonada e iludida, porém livre, capturando almas que insistem em ficarem presas ao corpo, ao desejo, à carne. O resto do elenco funciona bem, com uma ressalva especial para Emily Mortimer e Penelope Wilton, que entra na pele da sogra preconceituosa o bastante para julgar o exterior. Interessante ela não aceitar a inofensiva Nola na família, mas o instável e aproveitador Chris. A trilha sonora, composta exclusivamente por óperas, está belíssima. Nos momentos de maior tensão, a ópera se torna mais dramática, enquanto em outros mais casuais ela beira o instrumental e um tom de voz mais manso.
Sófocles disse, "jamais ter nascido pode ser a maior dádiva de todas". Pra que viver num labirinto de sorte, pra que existir se não se pode controlar a existência, se não se pode medir consequências? A verdade pode não ser castigo o suficiente para um crime, mas ele virá. Toda a vida é tão movida pela sorte e pelo azar que não se pode contar com uma maré boa o tempo inteiro. E o brilhantismo da obra é o roteiro, que consegue reunir bom humor e mesclar o existencialismo com um romance com castigos. A bola, dessa vez, caiu no campo do adversário para Woody Allen.
NOTA: 9

23 de junho de 2011

Água Para Elefantes (2011)

Um filme de Francis Lawrence com Robert Pattinson, Reese Witherspoon e Christoph Waltz.

A vida é o maior espetáculo da Terra. Em materiais humanos é que achamos a emoção e as ações necessárias para se enfrentar diversas situações cotidianas. E é aí que se encontra a força motriz de Água Para Elefantes, o novo filme de Francis Lawrence, o também diretor de Eu Sou A Lenda e Constantine. Os personagens se encontram num lugar-comum chamado realidade, os sentimentos e as ações são tão verdadeiras em sincronia com a história que quase se pode ver o amor e o ódio virarem personagens na tela. O rancor, a submissão e a piedade não ficam longe, e tudo isso é feito de um modo tão manipulador que, por mais que os personagens tornem-se irritantes ou insatisfatórios ao longo da trama, tudo é baseado inteiramente numa vida real circense. E esse é o maior trunfo de Água Para Elefantes: as emoções.
Jacob Jankowski (Robert Pattinson) é um jovem que vive nos anos 30, no auge da Grande Depressão. A crise acaba levando seus pais à falência e, quando eles morrem num acidente de carro, Jacob se vê obrigado a largar a faculdade de medicina veterinária por não conseguir se sustentar. Desolado e confuso, ele sai em busca de alguma razão para continuar sua jornada imprevisível. E é aí, em seu caminho, que ele acaba parando num trem do circo de August Rosenbluth (Christoph Waltz), um homem carismático, porém cruel. E é nesse circo que Jacob acaba encontrando o amor de sua vida: Marlena Rosenbluth (Reese Witherspoon), a encantadora de cavalos e a mulher de August.
A vivência de Jacob só começa após um choque em sua vida: a morte de seus pais. Com isso ele, sozinho, começa a andar com as próprias pernas e enfrentar os efeitos da crise de 29 nos Estados Unidos. O circo se torna sua verdadeira casa e é lá que ele aprende a veterinária que não conseguiu aprender cursando uma universidade. Cuidando diariamente de cavalos e leões, ele aprende a prática de sua teoria. Antes, Jacob não vivera o bastante, apenas vira como é a vida. Agora, que entra num negócio arriscado como a vida circense, ele vive e conhece os mistérios da vida. Ao se apaixonar por Marlena, Jacob vive a parte arriscada de sua existência. Por mais que mantenha certa afeição por August, sua paixão por Marlena ainda é mais forte. E a chegada da atração principal do espetáculo, a elefanta Rosie, significa o estopim para o amor entre Jacob e Marlena se tornar realidade. Tudo isso é bonito e gera grande comoção no público, mas o problema dessa grande emoção é o mesmo problema do protagonista antes de entrar no circo: tudo está apenas nas páginas. Enquanto o livro de Sara Gruen narra uma tocante paixão nos cenários do circo, a obra adaptada de Francis Lawrence funciona apenas pela caracterização do cenário, pois a falsa paixão é que toma lugar na verdade.
Enquanto as relações fervilham sentimentalismo nas cenas, o principal relacionamento não funciona. August e Marlena formam um típico casal conturbado, que não se amam mas se suportam, e isso fica crível. Jacob e Rosie criam laços de amizade pelo treinamento e pela convivência, o que é perfeitamente normal. Jacob e os outros artistas circenses adquirem uma amizade ainda maior. Mas Jacob e Marlena não funcionam juntos como um casal. Em certos momentos, onde Robert Pattinson mostra timidez por estar perto demais da mulher do chefe, até se acredita na relação de ambos. Mas no geral, nem Pattinson nem Witherspoon tem química o bastante para convencer o espectador de que aquilo é um amor. Se ambos ficassem olhando para o outro, em silêncio, não sairiam faíscas, muito menos algo que demonstrasse uma paixão verdadeira. O amor aqui só é mostrado em forma de palavras e carícias, mas nada de atos reais. E isso, drasticamente, diminui a beleza do filme.
A narrativa em off, feita por Hal Holbrook que interpreta Jacob Jankowski já ancião, é constituída em flashbacks e a representação do passado e do ambiente circense é feita belissimamente. E é a partir dessa narrativa que se afirma, a vida é realmente o maior espetáculo da Terra. Num turbilhão de amores, paixões e relacionamentos, a vida é que vale a pena na sessão. A vida, no caso, um coletivo de emoções confusas e impensadas, que atingem seu objetivo em cena. Os atores, que dão vida a esses sentimentos, ficam de lado graças às emoções. Robert Pattinson prova aqui que tem o que é preciso para sair da zona de conforto de um vampiro sem expressões faciais, e traz toda a compaixão em sua vida sofrida. A fotografia, que prefere os tons escuros em cena para trazer uma distinção entre a atualidade e os anos 30, auxilia Pattinson nesse trabalho. Reese Witherspoon é a razoável do filme. Sua personagem é muito arrogante, por mais passional que seja em seus atos e seja delicada nos movimentos. A timidez de Pattinson e a independência de Witherspoon, por mais que façam um contraste, não combinam. Ainda bem que, em cenas que ambos aparecem juntos, Christoph Waltz aparece para acabar com tanta superficialidade. Ele interpreta magistralmente seu personagem, alternando entre a fúria e a docilidade, se tornando amigavelmente assustador em cena. E isso lembra muitíssimo seu personagem em Bastardos Inglórios, o que acabou lhe rendendo um Oscar no ano.
Água Para Elefantes é um passatempo agradável. As condições da vida no circo são mostradas sem rodeios, os personagens possuem motivação necessária, o roteiro está bem adaptado e isso poderia render um filme imperdível. O pecado está em apostar mais num romance, assim como a obra literária, do que num drama, já que a veia dramática do filme - numa relação entre Christoph Waltz e a elefanta Rosie - é que se sobressai diante do casal principal. As emoções estão no auge dessa obra, é apenas uma pena que o foco tenha sido o elo mais fraco da composição.
NOTA: 7

19 de junho de 2011

Meia-Noite Em Paris (2011)

Um filme de Woody Allen com Owen Wilson, Marion Cotillard e Rachel McAdams.

É inegável que a capital francesa é um lugar acolhedor para a arte. Filósofos, pintores, escultores, escritores, cineastas, vários artistas fizeram e ainda fazem história na cidade. Paris há muito já entrou nessa atmosfera artística e deixou de ser uma cidade, virou uma obra de arte romântica. E é dentro de tanto romantismo e tanta história artística, cada época com seus movimentos e com suas próprias características, que Woody Allen foi buscar um refúgio para seu novo filme. E é dentro dessa concepção nostálgica de Paris que Allen revive e recria sua história com base em grandes nomes da arte. Meia-Noite em Paris é o retrato saudosista de uma realidade que não foi vivida pelo presente, mas é muito idolatrada por esse.
Gil (Owen Wilson) é um diretor hollywoodiano que, cansado de sua carreira, tenta escrever um romance. Ele acompanha a família de sua noive Inez (Rachel McAdams) para a incrível cidade de Paris. Na cidade-luz, enquanto ele tenta tomar inspiração para escrever seu livro, Inez sai para se divertir com Paul (Michael Sheen). Para Gil sair dessa atmosfera de banalização do patrimônio artístico que virou Paris, ele começa a andar sozinho à noite. E nessas caminhadas noturnas, ele acaba descobrindo uma cidade que ele julgava morta, mas que ainda vive depois da meia-noite.
Primeiramente, há o descontentamento da própria época, que fica latente no filme. Enquanto as primeiras cenas são o cotidiano de Paris, mostrando carros passeando pelas ruas parisienses, a Torre Eiffel, a Champs-Élysées e outros pontos turísticos famosos, a primeira fala é de Gil, afirmando que a beleza da cidade aflora quando chove. Gil é um infeliz otimista. Sua própria noiva não o acha interessante e não o apóia em sua ideias. Seus sogros não gostam dele. Ele já não faz mais filmes como antes. E seu maior sonho, maior até que morar em Paris, é morar em Paris dos anos 20. Imagine, por um instante, estar na eclosão do cubismo, do surrealismo, do expressionismo, do fauvismo? Imagine viver uma vida boêmia, vendo Pablo Picasso pintando suas obras, lendo as obras de Ernest Hemingway, ouvindo as composições de Cole Porter, vendo as novidades de Luis Buñuel, comprando quadros de Henri Matisse. E Gil sonha em viver aí, para poder levar seu livro a Gertrude Stein e sair a noite com Zelda e Scott Fitzgerald. A época dele não é 2010, porque ele não pode nascer e viver numa era onde o povo respirava arte, bebida e criatividade nas ruas, onde a vida é uma festa interminável.
Quando Gil finalmente consegue vivenciar sua ilusão da vida perfeita, maravilhado com cada nuance da Paris antiga, o escritor descobre que é infeliz. Que sua vida na verdade é apenas um retrato do que gostaria de vivenciar em sua maravilhosa Época de Ouro. E é nesses anos 20 que ele acaba encontrando um verdadeiro amor, numa época em que ele realmente se encaixa. Adriana, interpretada por Marion Cotillard, aparece na tela como a amante de Modigliani, Braque e Picasso. Mas o amor dela apenas se encontra na figura de Gil. O que fazer quando o coração bate por duas pessoas diferentes? Por mais que o amor ainda esteja lá em ambos os casos, a paixão vira indecisão. O problema é que o saudosismo não é apenas uma graça concedida à geração contemporânea. Por mais que os parisienses sonhem em viver nos anos 20, conversando com Salvador Dalí e Hemingway, os parisienses dos anos 20 também sonhavam em sua Época de Ouro, onde eles poderiam ouvir Toulouse-Lautrec no Moulin Rouge. Um diálogo entre Gil, Adriana e Paul Gauguin nos anos 1890 mostra isso com clareza. Ninguém está satisfeito com a própria época, talvez porque ninguém esteja satisfeito com a própria vida.
Enquanto o público observa essa história ganhar vida nessa proeza mágica de Paris, Woody Allen transforma tudo isso quase num autorretrato, com características de muitos de seus filmes. Aqui ele faz com Paris o que fez com Barcelona em Vicky Cristina Barcelona. A paixão de Gil mostrada entre duas mulheres, um triângulo amoroso, é semelhante à Match Point. A forma com que o protagonista adentra no seu mundo preferível remete ao clássico A Rosa Púrpura do Cairo. E o personagem de Owen Wilson, que nesse filme tem um bom desempenho, se assemelha muito com o próprio Allen. A belíssima fotografia engrandece a cidade maravilhosa retratada na tela. E esse romance inesperado entre diferentes épocas ainda pode render bons risos. Ver Picasso pintando uma de suas obras numa noite e no dia seguinte vê-la exposta num museu, 90 anos depois, é algo único. E quando Gil dá uma ideia a Buñuel sobre o filme O Anjo Exterminador, cujo roteiro o diretor ainda nem tinha pensado, a descontração fica óbvia. O maravilhoso elenco, que conta, além de Wilson, Cotillard e McAdams, com Kathy Bates, Adrien Brody, Corey Stoll, Léa Seydoux e até com a primeira-dama francesa, Carla Bruni, está em harmonia. Cada qual com seus altos e baixos, mas ele segura a sessão agradavelmente.
Carlos Drummond já dizia que não seria o poeta de um mundo caduco. A sociedade vive uma vida insatisfeita, querendo colocar suas esperanças num futuro incerto ou derramar suas mágoas pelo que não aconteceu. Demos chance ao presente!, é o grito que Meia-Noite em Paris lança nas salas em que é exibido. Woody Allen foi feliz em sua proposta, pois divertiu um público com uma magia que apenas ele poderia criar e recriar novamente. Seu eco fica forte com os personagens, numa atmosfera descontraída, recria a história da arte numa cidade completamente artística. Hemingway já dizia: Paris é uma festa.
NOTA: 9

15 de junho de 2011

Coração Selvagem (1990)

Um filme de David Lynch com Nicolas Cage, Laura Dern e Diane Ladd.

David Lynch é o diretor surrealista da geração atual. Seus últimos filmes, Império dos Sonhos e Cidade dos Sonhos, ambos retratando um onirismo incrível baseado seja no universo desejoso do ID ou da loucura em seu maior manifesto, comprovam isso. Seu primeiro longa-metragem, o perturbador Eraserhead, prova isso com mais clareza ainda por meio de suas imagens distorcidas e sem sequência que acompanham uma história nada convencional. E até quando ele cria filmes que não abordam com tanta liberdade o que vai além do inconsciente das pessoas, sua marca ainda está presente nessas obras. Coração Selvagem, o ganhador da Palma de Ouro em 1990 prova isso, e mistura um road movie e uma homenagem à Elvis Presley e a O Mágico de Oz em seus 120 minutos alucinantes.
Lula Fortune (Laura Dern) é uma moça de 20 anos que perdeu seu pai em um terrível incêndio. Atualmente ela namora com Sailor Ripley (Nicolas Cage), um homem mais velho que exala rebeldia em seus atos. Porém, para o romance não dar certo, a mãe de Lula, Marietta Fortune (Diane Ladd), faz de tudo para a filha acabar o relacionamento com o delinquente. Dois anos depois de Marietta incriminar Sailor e colocá-lo na cadeia, ele consegue sua condicional e pega Lula, para ambos fugirem até a Califórnia. No entanto, a cruel mãe contrata assassinos e detetives para ter sua filha novamente.
O filme assume tantas características de um conto de fadas sombrio contado na beira das estradas norte-americanas que um simples road movie acaba virando um drama de humor negro com as características principais de David Lynch. Seus cortes abruptos ainda estão lá, embora cada vez com mais coerência, e por mais que seja um de seus filmes mais fáceis, ainda é perturbador ver tamanha violência e uma repulsa extrema adquirida pelo cenário e pelos próprios personagens. Os personagens caricatos conseguem passar a mensagem adiante dessa trama que busca por valores completamente desconhecidos para personalidades incrivelmente confusas em seus próprios desejos. Um homem valentão e rebelde que usa uma jaqueta de cobra e repete, frequentemente, um discurso sobre a liberdade de expressão. Uma menina que sonha tanto com sua vida num conto romântico figurado que adquire até uma característica de retardo em cena. Uma mãe tão ciumenta que acaba tendo surtos psicóticos a cada cena surpreendente. Um assaltante nojento que não para de sorrir com seus dentes de ouro.
Nas mãos de David Lynch, o livro que poderia ser adaptado como um romance acabou virando um road movie, caracterizado por suas cenas áridas, e extremamente exagerado. Tudo nele envolve um superlativo. O amor aqui é exacerbado o bastante para os detalhes não serem escondidos. Enquanto carícias e beijos mostram a aproximação dos dois protagonistas, o sexo entra em cena logo na tomada seguinte, com uma ardência que contagia o público, sempre colorido por uma fotografia supersaturada, cobrindo a tela mas não escondendo o amor. A loucura tem seu lado tão característico na figura de Marietta que ela acaba se desligando de uma personagem entrando em outra numa fração de segundos. A violência é forte em seus momentos, que variam desde um tiro de espingarda que arranca uma cabeça até o personagem de Nicolas Cage esmurrando um homem até a morte. E o exagero faz parte de tudo. Se não fosse o exagero, como o filme funcionaria? O amor entre dois caracteres tão distintos só pode se dar por tamanha força amorosa. Os sonhos de um não funcionam sem as características do outro. O road movie acaba se encontrando na paixão ardorosa de um casal não tão ortodoxo assim. Elvis Presley só consegue cantar suas canções perto de sua Dorothy.
O estilo de Nicolas Cage - mostrando como ele conseguia atrair as atenções sem precisar fazer um papel tão caricato num filme de ação - lembra tanto o rei do rock quanto o seu discurso repetitivo. As cenas da sonhadora Laura Dern, que interpreta Lula com segurança, completam esse estilo rebelde. Entre falas sobre a Bruxa Má do Leste e canções de amor, o desfecho da obra é clichê, mas delicioso. Afinal, não há outra maneira de acabar uma história de amor sem o amor, e David Lynch sabe disso. Entre a esquizofrenia e a epifania há a dolorosa paixão que fisgou dois corações selvagens. Aqui, uma Diane Ladd entra em sua personagem com maestria e com um sofrimento sem igual, sua vilã ficou perfeita em todas as esferas e caricata o bastante para se enquadrar nessas imagens de um manicômio que Lynch oferece. Willem Dafoe é outra grata surpresa do longa, dando uma atuação necessária ao seu Bobby Peru. O humor negro aparece em todas essas cenas, coloridas com uma fotografia clara e contornada por uma trilha sonora magnífica, que acompanha os personagens do rock ao country em cenas controversas.
Sapatos vermelhos se batendo, não após um conselho do mágico de Oz, mas após um abuso sexual. Uma bola de cristal revelando o futuro. Uma mulher, após um acidente de carro, coçando seu cérebro. Uma bruxa com a cara completamente pintada de vermelho. Um herói que, após redescobrir o que já tinha encontrado, canta Love Me Tender para sua amada. David Lynch mistura todos esses elementos de forma a construir Coração Selvagem, um romance dramático perturbador de humor negro que ocorre nas estradas. Tudo é tão bem construído aqui, numa edição grandiosa do mestre surrealista do cinema, que o filme vai para além da objetividade em sua loucura romântica. Os sentimentos são extremos no fim dessa grande estrada de tijolos amarelos.
NOTA: 9

12 de junho de 2011

Eu Matei A Minha Mãe (2009)

Um filme de Xavier Dolan com Xavier Dolan e Anne Dorval.

Laços familiares já não são tratados como antes devido ao contante progresso, que acaba chacinando as fortes ligações sanguíneas e as reduzem para nada menos do que uma relação amistosa. É errado generalizar isso, já que o retrato de uma família unida ainda sobrevive na idade contemporânea, mas o quadro de relações conturbadas apenas cresce. Eu Matei Minha Mãe é esse quadro no particular, não numa esfera universal, e aborda o psicológico das personagens ao pouco. Porque tanta raiva? Porque tanto ódio? Qual o produto de uma reação tão explosiva?
Hubert Minel (Xavier Dolan) é um adolescente como muitos outros: vai a escola, tem um namorado e, particularmente, não consegue aguentar sua mãe. Ao mesmo tempo, Chantale Minel (Anne Dorval) é uma mãe como muitas outras: tem suas amigas, trabalha honestamente e não sabe o que fazer com o seu filho. Nessa relação baseada numa autobiografia do diretor, ambos não conseguem explorar de uma forma fácil e simples o que muitas outras família conseguem. As atitudes de Hubert para sua mãe parecem o estopim de uma anarquia, e os atos de Chantale para seu filho são completamente controladores, mas ambos não percebem o quanto jogam fora nesse ódio mútuo baseado na ilusão emocional.
No conflito interno entre ambos, não é o universo deles a única forma de liberar tamanha raiva. Os dois buscam uma fuga da própria realidade em mundos paralelos de famílias supostamente felizes. Chantale se esconde atrás de suas amigas para mascarar seu descontentamento com o filho rebelde. Hubert não mascara seus problemas para a sociedade, ele apenas se refugia na família do namorado Antoine (François Arnaud), cuja mãe é liberal o bastante para aceitar a homossexualidade do filme da forma mais casual o possível, o que o garoto problemático não encontra no ambiente familiar. O homossexualismo enrustido acaba sendo mais um dos vários motivos que levaram ao estopim dessa eclosão sentimental onde o laço familiar acabou virando o ódio da convivência, da inveja e da maturidade. A cada cena, Xavier Dolan coloca uma foto de sua infância para comparar o nível de atenção e de carinho de sua mãe para com a situação atual. E não é só isso. O cenário fala por si próprio, a destoação entre dois personagens tão diferentes é colocada em roupas, cores e gestualizações. E ambos, Dolan e Dorval, se esforçam e criam o péssimo ambiente do filme com maestria.
O filme é uma faca de dois gumes, com dois protagonistas distintos, e, ao mesmo tempo, semelhantes. Como não gostar de um se este está irreversivelmente ligado ao outro? De um lado temos o adolescente Hubert Minel, que sofre com uma coisa completamente normal: o crescimento em sua idade. Numa época de hormônios e sentimentos aflorados, revelar o que ele sente é, ironicamente, difícil. Ser criado numa sociedade que transborda a crítica e o preconceito leva à autonegação, à introspecção. E essa fuga o leva ao rancor da mãe, um rancor que surge por sua própria culpa: por não poder mais confiar nela pelo simples motivo dela parecer não se importar com tudo o que ele passa. Mas não tomar a iniciativa é um problema dele, não? Exatamente, mas explicar isso a um adolescente saindo da puberdade é impossível se ele não conseguir equilibrar seu lado racional com seus sentimentos. Hubert acaba se fechando na sua ideia da razão e seu egocentrismo tenta dominar e controlar a mente dos outros a sua volta. Mas, o que ele mostra para o mundo é diferente do que ele realmente guarda e revela a si mesmo. Ele é apenas um menino confuso, que precisa da atenção de uma figura compreensiva, mas que na falta dessa faz vídeos autoexplicativos no banheiro explorando a razão que manifesta ao mundo pela raiva.
O outro lado é da mãe. Chantale é uma mulher cansada, cansada de seu trabalho, cansada de ser chamada para reuniões, cansada de ter de tomar conta de tudo devido à irresponsabilidade do filho. Afinal, o garoto já tem independência o bastante para sobreviver no mundo. O que ela não percebe em toda a sua rotina diária é que o filho não tem o material necessário para sobreviver na própria mente, que acaba por degradá-lo aos poucos. O peso que Anne Dorval coloca aqui é fundamental e instiga o espectador a ver o lado da mãe, essa mulher que ama o suficiente para cobrir um planeta mas não demonstra. O excesso de amor parece ser desnecessário e enfadonho, mas a falta dele se torna o principal problema para as faíscas surgirem. Como lidar com isso? A loucura chega fácil para essa família. Mãe acaba tendo problemas em qualquer ambiente que vá, tudo gerado por não saber lidar com o próprio filho. Filho acaba devaneando e esquecendo sua realidade. Em cenas separadas, com câmera lenta e trilha sonora mais marcante - o que Dolan também fez em seu Amores Imaginários - ele demonstra o ódio da mãe em tomadas com vitrines se estilhaçando ou no ato de desarrumar todo o quarto dela. Por uma curiosidade, a cena que contradiz toda essa lentidão do rancor é quando ele e o namorado acabam transando enquanto pintam o escritório da mãe de Antoine, numa rapidez em cena, música mais alegre e ambos claramente regozijados.
Eu Matei Minha Mãe é um filme subjetivo que possui uma característica forte pelo seu tema principal, a abordagem psicológica de um ódio bipolar por alguém cujo amor deveria ser latente. Porém, nada se mostra tão inovador como comentado. Os personagens acabam se tornando tão odiosos à medida em que o rancor cresce que não fica mais crível a verdadeira relação entre ambos ou a construção dos caracteres dos personagens. O ódio surge como resultado não de um orgulho ferido ou de mágoas passadas, apenas de um excesso de amor que acabou se endurecendo com o passar do tempo e esqueceu de seu manifesto. A amargura então surge para lembrar ao coração que ainda há pessoa ali que devem e precisam ser amadas.
NOTA: 8

8 de junho de 2011

Candy (2006)

Um filme de Neil Armfield com Heath Ledger, Abbie Cornish e Geoffrey Rush.

Parece que o consumo de drogas é um tema que não cansa, pois a cada dia são feitos filmes melhores e com uma abordagem ainda mais ampla sobre o assunto. Tivemos o alemão Eu, Christiane F. - 13 Anos, Drogada e Prostituída, que, por meio de uma fotografia escura e de cenas explícitas do uso de drogas, marcou uma geração. Anos mais tarde, surgiu o inglês Trainspotting, de David Boyle, que usando ironias e cenas que beiram a comédia das situações com o drama do vício, encantou um bom público. Já em 2000 o americano Darren Aronofsky criou sua obra Réquiem Para Um Sonho, que com um ritmo frenético e com cenas fortíssimas, ficou na mente de muitos e até indicou Ellen Burstyn para um Oscar. O australiano Candy seria um filme como todos se fosse, primeiramente, um filme sobre drogas.
Dan (Heath Ledger) é um jovem desempregado, que tenta ganhar a vida escrevendo poemas para revistas. Ele é o namorado de Candy (Abbie Cornish), uma jovem pintora cuja arte não é reconhecida. O amor entre eles é forte, mas além do sentimento há algo mais em comum: ambos são viciados em heroína. No início do vício e da paixão deles, eles vivem uma felicidade eterna, mas nenhum deles tem como sobreviver por muito tempo gastando tudo em drogas.
As drogas aqui são utilizadas meramente como um plano de fundo no verdadeiro assunto do filme: o relacionamento. Sim, é um filme sobre drogas, metaforicamente, mas é. Candy, traduzida do inglês doce, é viciante. É uma moça bonita, que fala bem, pinta e tem seu próprio método de vida. Quanto mais Candy toma lugar na vida de Dan, mas viciados eles se tornam. As cenas da piscina no começo ilustram isso de forma simples e clara. Enquanto antes Candy mergulhava na perdição e Dan apenas olhava o pecado nadando e tentando ele, logo eles se abraçam e mergulham nos sortilégios da vida. E não para por aí. O filme é dividido em três partes, sendo elas o paraíso, a terra e o inferno. A loucura, a prostituição, o compromisso, o desemprego e as drogas são encaradas dependendo do humor do relacionamento. Enquanto o simples pensamento de alguém ir se drogar pode levar a brigas terríveis quando ambos estão mal, quando Candy desmaia na banheira após injetar, seu ato é tratado com carinho e compreensão por um Dan amoroso. E todos os problemas são explorados de forma tão natural que até fica crível uma vida tão triste e melancólica quanto a de Dan e Candy.
Triste por tudo, porque se não fossem as drogas, a vida do casal seria um romance belíssimo. Os personagens têm seus fins à medida que o filme decide terminar o vício. Talvez a maior tristeza não seja ver duas pessoas, explicitamente, injetando heroína e entrando num estágio ilusório de uma felicidade que apenas existe nas drogas. A maior tristeza é ver que sem as drogas, Candy e Dan não são nada. Observar um relacionamento que apenas se mantém graças a um pouco de pó branco por dia é horrível. Não existe mais amor, existe um vício. E quando no lugar onde deveria haver paixão, há apenas sofrimento mascarado por algumas injeções, ver tudo isso crescendo aos poucos sem que os personagens se deem conta de nada faz o espectador afundar na cadeira diante dessa obra pessimista. Os personagens viram protagonistas aos poucos, e é doloroso tomar afeição por alguém e ver essa pessoa apenas regredir.
E o filme, assim como muitos, retrata o verdadeiro fim das drogas. Não há um remédio milagroso que vá acabar com o vício. Não há um guru espiritual que faça alguém atingir o nirvana. Há apenas esforço. Um esforço dilacerante que é tomado de recaídas cruéis. Injetar droga é péssimo. Mas se a abstinência é tão dolorosa quanto, não é melhor voltar às drogas e desfrutar de alguns momentos dessa felicidade instantânea? Como se vive com a ascese quando o corpo já se acostumou com o pecado? E assim terminamos Candy, com seu desfecho baseado na realidade. Candy consegue, numa clínica, largar sua dependência química. Dan consegue, por meio do afastamento, sobreviver e acabar com vício da paixão. No fim os pecados são absolvidos, e a única coisa que resta é o esquecimento natural. Os atores principais - Ledger e Cornish - trabalham perfeitamente, um sendo o contraponto do outro e cada um roubando a cena à seu modo. Geoffrey Rush mostra que é um bom ator e se segura como coadjuvante, por mais que consiga quebrar toda a atmosfera da cena com alguns mise en scène extravagantes. A direção é segura, a edição é ótima e o roteiro funciona muitíssimo bem. Ainda com uma fotografia clara em contraste com a obscuridade das cenas e com a trilha sonora rodeando a melancolia, a obra se fecha numa exposição de tristezas e desilusões.
Candy é um filme para ser visto. É um retrato fiel das drogas se misturando com a paixão. Um retrato da decadência dos personagens de Abbie Cornish e Heath Ledger - que comprovaram a beleza na morte sobre a vida. No fim, é impossível olhar a tela e não derramar uma lágrima, seja de incredulidade, decepção ou a mais pura tristeza. É um filme sobre drogas com uma abordagem mais diferente. Afinal não foram os personagens que ficaram viciados na droga, foi o relacionamento que acabou morrendo de overdose.
NOTA: 8

4 de junho de 2011

Um Novo Despertar (2011)

Um filme de Jodie Foster com Mel Gibson, Jodie Foster e Jennifer Lawrence.

Às vezes parece que seria bem melhor se o ser humano não tivesse evoluído. Com toda essa globalização resultante do crescimento incontrolável do capitalismo e da tecnologia, os problemas recrudescem. Há muito o homem sofre com a desigualdade dividida em pólos no mundo e com os efeitos negativos que essa evolução cria na natureza. O conhecimento é ótimo, mas ao mesmo tempo é terrível. E para piorar, há o auto-conhecimento. O antropocentrismo presente nas maiores vertentes desde o início do século XX tem levado o homem a procurar saber mais sobre si mesmo - o que acaba resultando nas mais diversas patologias. Conhecer-se é um risco e quando há uma epifania na vida, que acaba mostrando o quanto o tempo "aproveitado" foi desprezível, o homem acaba ficando louco.
Walter Black (Mel Gibson) é um homem depressivo. Ele vive com sua esposa Meredith (Jodie Foster), que o evita o máximo possível depois de um casamento arruinado; e com seus dois filhos. O filho mais novo, Henry Black (Riley Thomas Stewart), depois de tanto tempo de convivência com o pai, se torna introspectivo e extremamente melancólico. O filho mais velho, Porter Black (Anton Yelchin), anota todos as manias do pai para não se assemelhar a ele em nada. Quando Walter saí de casa, ele tenta se suicidar. Porém, antes que esse desejo se concretize, um fantoche de castor (Mel Gibson) começa a falar com Walter e tenta retomar as rédeas de sua vida.
Depois de tantas polêmicas na vida de Mel Gibson que envolvem o racismo, alcoolismo, homofobia, machismo, surtos e antissemitismo, a carreira dele não é mais o que era no seu auge. Enquanto sua carreira há duas décadas atrás deu sua principal guinada, com os Oscar de seu filme Coração Valente, na última década ela parou. Sendo alvo de vários preconceitos da crítica e se tornando até uma persona non grata, o que retirou sua participação em filmes como o recente Se Beber Não Case II, parece que Jodie Foster decidiu ajudá-lo. Pois bem, Um Novo Despertar não seria nada sem Mel Gibson, assim como dificilmente alguém mais teria simpatia por Gibson sem Um Novo Despertar. É uma reciprocidade muito bem feita. Pra quem acha que um ator odiado com um fantoche na mão em todas as cenas renderia uma comédia, está enganado. Rendeu a melhor atuação de Mel Gibson nos últimos anos. E o elenco ainda se mistura a esse talento. Anton Yelchin, Riley Thomas Stewart e Jennifer Lawrence se enquadram ao esperado do elenco, e ainda temos Jodie Foster que rende bons momentos.
O principal personagem também é o principal problema do filme. O Castor é a praga principal. Há um paradoxo forte na tela. Ninguém gostaria de estar na pele de Walter, um depressivo que não acha mais graça na vida, que não consegue mais agradar a família. Mas será que, mesmo para uma pessoa que desistiu de viver, a solução é perder a liberdade e ficar na custódia de outro ser? São dois extremos que juntos renderam um personagem bem polêmico e bem feito. A depressão é um problema sério, que no filme é resolvido por tudo que Walter tinha esquecido de fazer. Ele não mantinha sua relação familiar forte, ele não ajudava em casa, ele não satisfazia a mulher, ele não dava conta de ser o presidente de uma empresa de brinquedos. Viver o que o inconsciente prega parece ser uma boa solução, mas como desfrutar uma vida quando ela é um cárcere? Se não fosse triste, viraria uma comédia. Mas é um filme sério. Walter gostaria de se ajudar, mas não consegue mais. Aí sua mente faz um motim e converte isso para a loucura, que é acreditar em um boneco falante para dar conselhos. O jogo é invertido. O Castor é uma personalidade muito mais forte do que o próprio Walter, o que faz o humano se transformar na marionete do brinquedo.
Enquanto a depressão é mostrada em sua forma real na terrível relação de escravidão entre o Castor e Walter, o filme começa a desandar. Meredith começa a se tornar mais cansada com um prisioneiro aparentemente feliz e seguro do que com o próprio marido depressivo. Porter não consegue mais segurar sua segurança recém conquistada e acaba arruinando seu relacionamento com Norah. Henry é o único que aprova essa transformação, mas ele não tem mais um pai, ele tem um amigo castor. E é aí, na maior fragilidade dos personagens, que o roteiro se torna decepcionante. Kyle Killen, ao invés de mostrar o drama real do teor depressivo que assombra a contemporaneidade em nossa sociedade, cria um reviravolta e uma cura milagrosa para os devaneios psicológicos do protagonista. Enquanto vemos uma pessoa feliz dominar uma pessoa triste, vemos o clichê dominar toda a obra de Jodie Foster, que se bem trabalhada poderia render mais reconhecimento. A trilha sonora de Marcelo Zarvos e a fotografia de tons claros recheiam a atmosfera do filme.
Um filme com uma direção muito boa de Jodie Foster, uma atuação maravilhosa do escandaloso Mel Gibson e personagens bem trabalhados num roteiro que desandou. No fim, Um Novo Despertar se torna um filme sobre a depressão, mas um para ser esquecido devido ao rumo que tomou. Não espere uma conclusão fantástica, que irá retratar de uma forma mais psicológica o ser humano. Espere por pieguice. Freud ficaria decepcionado. Porém, no meio de tantos déjà-vu da Sessão da Tarde, algo aparece ali para mostrar para o que o filme veio. Não é a melhora repentina causada por um episódio chocante, ou a emoção trazida pelo diálogo retomado entre pai e filho. É o que vem da parte mais clichê, do diálogo mais clichê - Jennifer Lawrence falando sobre a depressão. E, no meio de tantos erros, numa coisa ela está certa: você não precisa enfrentar tudo isso sozinho.
NOTA: 7