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15 de junho de 2011

Coração Selvagem (1990)

Um filme de David Lynch com Nicolas Cage, Laura Dern e Diane Ladd.

David Lynch é o diretor surrealista da geração atual. Seus últimos filmes, Império dos Sonhos e Cidade dos Sonhos, ambos retratando um onirismo incrível baseado seja no universo desejoso do ID ou da loucura em seu maior manifesto, comprovam isso. Seu primeiro longa-metragem, o perturbador Eraserhead, prova isso com mais clareza ainda por meio de suas imagens distorcidas e sem sequência que acompanham uma história nada convencional. E até quando ele cria filmes que não abordam com tanta liberdade o que vai além do inconsciente das pessoas, sua marca ainda está presente nessas obras. Coração Selvagem, o ganhador da Palma de Ouro em 1990 prova isso, e mistura um road movie e uma homenagem à Elvis Presley e a O Mágico de Oz em seus 120 minutos alucinantes.
Lula Fortune (Laura Dern) é uma moça de 20 anos que perdeu seu pai em um terrível incêndio. Atualmente ela namora com Sailor Ripley (Nicolas Cage), um homem mais velho que exala rebeldia em seus atos. Porém, para o romance não dar certo, a mãe de Lula, Marietta Fortune (Diane Ladd), faz de tudo para a filha acabar o relacionamento com o delinquente. Dois anos depois de Marietta incriminar Sailor e colocá-lo na cadeia, ele consegue sua condicional e pega Lula, para ambos fugirem até a Califórnia. No entanto, a cruel mãe contrata assassinos e detetives para ter sua filha novamente.
O filme assume tantas características de um conto de fadas sombrio contado na beira das estradas norte-americanas que um simples road movie acaba virando um drama de humor negro com as características principais de David Lynch. Seus cortes abruptos ainda estão lá, embora cada vez com mais coerência, e por mais que seja um de seus filmes mais fáceis, ainda é perturbador ver tamanha violência e uma repulsa extrema adquirida pelo cenário e pelos próprios personagens. Os personagens caricatos conseguem passar a mensagem adiante dessa trama que busca por valores completamente desconhecidos para personalidades incrivelmente confusas em seus próprios desejos. Um homem valentão e rebelde que usa uma jaqueta de cobra e repete, frequentemente, um discurso sobre a liberdade de expressão. Uma menina que sonha tanto com sua vida num conto romântico figurado que adquire até uma característica de retardo em cena. Uma mãe tão ciumenta que acaba tendo surtos psicóticos a cada cena surpreendente. Um assaltante nojento que não para de sorrir com seus dentes de ouro.
Nas mãos de David Lynch, o livro que poderia ser adaptado como um romance acabou virando um road movie, caracterizado por suas cenas áridas, e extremamente exagerado. Tudo nele envolve um superlativo. O amor aqui é exacerbado o bastante para os detalhes não serem escondidos. Enquanto carícias e beijos mostram a aproximação dos dois protagonistas, o sexo entra em cena logo na tomada seguinte, com uma ardência que contagia o público, sempre colorido por uma fotografia supersaturada, cobrindo a tela mas não escondendo o amor. A loucura tem seu lado tão característico na figura de Marietta que ela acaba se desligando de uma personagem entrando em outra numa fração de segundos. A violência é forte em seus momentos, que variam desde um tiro de espingarda que arranca uma cabeça até o personagem de Nicolas Cage esmurrando um homem até a morte. E o exagero faz parte de tudo. Se não fosse o exagero, como o filme funcionaria? O amor entre dois caracteres tão distintos só pode se dar por tamanha força amorosa. Os sonhos de um não funcionam sem as características do outro. O road movie acaba se encontrando na paixão ardorosa de um casal não tão ortodoxo assim. Elvis Presley só consegue cantar suas canções perto de sua Dorothy.
O estilo de Nicolas Cage - mostrando como ele conseguia atrair as atenções sem precisar fazer um papel tão caricato num filme de ação - lembra tanto o rei do rock quanto o seu discurso repetitivo. As cenas da sonhadora Laura Dern, que interpreta Lula com segurança, completam esse estilo rebelde. Entre falas sobre a Bruxa Má do Leste e canções de amor, o desfecho da obra é clichê, mas delicioso. Afinal, não há outra maneira de acabar uma história de amor sem o amor, e David Lynch sabe disso. Entre a esquizofrenia e a epifania há a dolorosa paixão que fisgou dois corações selvagens. Aqui, uma Diane Ladd entra em sua personagem com maestria e com um sofrimento sem igual, sua vilã ficou perfeita em todas as esferas e caricata o bastante para se enquadrar nessas imagens de um manicômio que Lynch oferece. Willem Dafoe é outra grata surpresa do longa, dando uma atuação necessária ao seu Bobby Peru. O humor negro aparece em todas essas cenas, coloridas com uma fotografia clara e contornada por uma trilha sonora magnífica, que acompanha os personagens do rock ao country em cenas controversas.
Sapatos vermelhos se batendo, não após um conselho do mágico de Oz, mas após um abuso sexual. Uma bola de cristal revelando o futuro. Uma mulher, após um acidente de carro, coçando seu cérebro. Uma bruxa com a cara completamente pintada de vermelho. Um herói que, após redescobrir o que já tinha encontrado, canta Love Me Tender para sua amada. David Lynch mistura todos esses elementos de forma a construir Coração Selvagem, um romance dramático perturbador de humor negro que ocorre nas estradas. Tudo é tão bem construído aqui, numa edição grandiosa do mestre surrealista do cinema, que o filme vai para além da objetividade em sua loucura romântica. Os sentimentos são extremos no fim dessa grande estrada de tijolos amarelos.
NOTA: 9

4 comentários:

renatocinema disse...

Adoro os trabalhos de Lynch, principalmente Cidade dos Sonhos, em minha visão, sua obra-prima.

Entretanto Coração Selvagem, que assisti faz muitos anos, preciso rever.

Não gostei tanto, quando assisti. Talvez, por não ser fã de Nicolas Cage (só apreciei seu trabalho em Despedida em Las Vegas).

Mas, você tem crédito comigo. Se acha que o filme merece nota 9, preciso dar uma nova chance ao filme.

Sou fã de Road movie e vou seguir sua dica.

Amanda Aouad disse...

Gosto de Coração Selvagem, os sapatinhos, a bruxa, aquela cena final pulando capus de carro. hehe. Mas, não é dos meus preferidos de Lynch, na verdade colocaria ele apenas na frente de Eraserhead e aquela bomba que foi Duna. hehe. Cidade dos Sonhos, é meu preferido, apesar de amar A História Real.

abraços

augusto disse...

naum vi esse filme mas agora nem sei se quero pq vc conta tanta coisa do filme e sinceramente é chato pra quem naum viu o filme...deveria diminuir seu texto pq cansa tb, ninguem le naum, so finge que le...evite spoiler menino...abraço ae..mas repense nisso tah?

Renato Oliveira disse...

Oi Gabriel. Curiosissíma a tua resenha deste filme! gosto bastante do Lynch, no entanto ainda há vários trabalhos dele que nao conheço. "Coração Selvagem" será um dos próximos, com certeza - o surrealismo é uma marca sem igual, e que sim, nos permite discutir aspectos interessantes sem respostas prontas, sem certezas, mas com "possibilidades para". :)

Um abraço! bom final de semana.