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27 de outubro de 2011

Melancolia (2011)

Um filme de Lars Von Trier com Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg e Alexander Skarsgård.

Não foram poucos os filmes que falam do fim do mundo. Aliás, há uma certa obsessão humana em tentar registrar um desfecho definitivo de maneira absoluta e assustadora no cinema. 2012, Armageddon, Presságio, O Dia Depois de Amanhã, Guerra dos Mundos, Planeta dos Macacos. É uma lista interminável mas que acaba terminando em lugar comum: desespero, redenção, um drama que fica em plano de fundo por detrás das mudanças apocalípticas. Estava na hora de fazer diferente. Lars Von Trier, o diretor dinamarquês de filmes como o cruel Dogville e o simbólico Anticristo, criou seu próprio conto de fim do mundo sem focar necessariamente na destruição da Terra. Melancolia, o filme-desastre de Von Trier, é dividido em duas partes, que são marcadas pela presença de um conflito que permanece constante nas telas. Justine (Kirsten Dunst) é a irmã mais nova e a mais instável da família, com um peso emocional forte que pode ser destrutivo se abalado. Claire (Charlotte Gainsbourg) é a irmã mais velha e a mais controlada e responsável, metódica e organizada para não se desesperar em sua cabeça. Por mais perto que estejam uma da outra, percebe-se a distância de personalidades de ambas. Enquanto isso vai ficando cada vez mais claro aos olhos do espectador, duas situações são apresentadas para aumentar o clímax familiar: o casamento de Justine com Michael (Alexander Skarsgård); e o choque iminente de um planeta, chamado Melancolia, com a Terra.

A primeira parte do filme é denominada Justine, que mostra com o ponto de vista da personagem de Kirsten Dunst o dia de seu casamento. O começo do filme, após o epílogo de fotografias caóticas, mostra Justine e Michael se dirigindo à festa do casamento, tendo de passar por uma trilha sinuosa. O cinema de Von Trier, sendo cheio de metáforas e subjetividades imagéticas, transmite aí uma mensagem para o espectador: é difícil sair do casamento para chegar à festa. É difícil sair das expectativas do futuro para voltar aos demônios do passado. É difícil ir da felicidade à melancolia. Justine, ao menor contato com a família, volta ao seu estado depressivo de antes. Enfrentar a ferocidade metodista da irmã, o pessimismo materno e o descaso paterno transformam a radiante Justine numa pessoa diferente, o que acaba tornando o dia mais feliz de sua vida em uma concepção irreal. A moça problemática acaba destruindo sua própria vida por pressão daqueles que lhe disseram o que não fazer. Justine, personagem baseada na Justine ninfomaníaca de Marquês de Sade, não é culpada por seus atos, eles apenas surgem do que vieram os instintos e apenas os segue impulsivamente. Ela luta bravamente, mas não consegue vencer sua batalha. A interpretação de Kirsten Dunst, arrisco dizer, é a melhor da carreira. Por mais cansativo que seja arrumar uma festa e observá-la do início ao fim numa perspectiva depressiva, é impossível dizer que Dunst não fez o que seu papel queria: transmitir o mesmo pesar ao espectador, e falo isso de uma forma boa.

A segunda parte do épico apocalipse de Lars Von Trier é Claire. Após a festa de casamento da irmã, Claire a recebe novamente em sua casa para tratá-la da depressão profunda em que se encontra. Justine está tão mal que não consegue pegar um táxi sozinha. Aos poucos, o laço familiar se mostra mais forte do que na primeira parte. Claire quer mostrar para si mesma, antes de tudo, que ela faz parte de uma família. Ela quer olhar para a irmã numa necessidade e ajudá-la, por mais que não fosse capaz de ajudá-la no momento em que a depressão chegou. Mas o que ela podia fazer? Era para ser um dia feliz. Enquanto Justine se agarra ao irreal do desapego que lhe foi dado, Claire se agarra a coisas mais tangíveis e se recusa a soltá-las, mesmo que essas coisas sejam irreais. Até que a astronomia entra em ação e revela para Claire seu lado verdadeiro: o desespero que sempre tentou encobrir. Sua organização, seu perfeccionismo encobriam uma camada tão profunda de insegurança do mesmo modo que reagiria qualquer outra pessoa ao descobrir que sua vida está prestes a acabar, assim como a de todo o planeta. Claire não acha mais no que se agarrar, já que a verdade veio à tona. Quando ela precisou de um degrau, todos se fecharam devido à ameaça. Todos menos Justine, que mostrou, como sempre, seu desapego próprio a tudo, a todos - e a si mesma.

Durante todo o medo, desespero e ansiedade para o fim dos tempos, o que é tecido na tela é uma crônica familiar formada por dois extremos. Em certa parte do fim, Claire fala para Justine que gostaria de passar os últimos momentos junto à irmã e ao filho, e sua sugestão é recebida com um tapa. O conceito de família de Claire já estava esgotado há tempos e só mesmo o fim do mundo para fazê-la perceber isso. Ao mesmo tempo, Justine tinha um conceito de família sem expectativa alguma, o que não a trouxe surpresas desagradáveis com o fim do mundo. Seu ceticismo e sua própria melancolia, agora inexistente, acabam ao mesmo tempo que Melancolia chega ao seu ápice: no momento final. Charlotte Gainsbourg tem um ótimo desempenho. Passa sensações contrárias as de Dunst e mais inferiores devido ao seu cinismo superficial, mas que não desagradam em momento algum. Além das duas mulheres, há também uma ressalva especial para Charlotte Rampling, Kiefer Sutherland e Alexander Skarsgård que ajudam a construir toda a atmosfera resultante do filme. A fotografia do filme, belíssimo ponto que o diretor adora enfocar, mostra, apenas nos momentos iniciais, toda a beleza de Melancolia. O responsável, Manuel Alberto Claro construiu um epílogo onde cenas do apocalipse são retratadas numa velocidade menor, onde o cenário se move mais rapidamente do que o foco. Observe as expressões de Kirsten Dunst se modificarem minimamente enquanto folhas caem num cenário cinza. Observe raios saindo dos dedos e de postes. Observe pegadas que afundam a terra. Observe uma noiva numa comunhão profunda com as águas, esperando apenas o momento mais feliz de sua vida, o momento de choque, o momento em que seu descaso irá embora para sempre.

Não é pelo fato que o diretor virou uma persona non grata no festival de Cannes após uma infeliz declaração sobre o nazismo que o filme tenha de receber toda a fama provinda do criador. A polêmica do dinamarquês não encobre o brilho usado no fim dos tempos dessa sua nova obra. O que foi usado aqui não foram toneladas de efeitos especiais, mas um drama familiar para contornar um planeta inteiro. Um aspecto final é a trilha sonora, composta exclusivamente por músicas de Tristão e Isolda, ópera de Wagner. Algo mais oportuno? Von Trier pretende que seu público morra de tristeza, igual a Isolda. Isso fica claro na força interpretativa das atrizes, fica claro na fotografia, na forma em que ele próprio conduz o filme, fica claro na forma em que cenas de clímax são mostradas num estilo documentário único, fica claro em toda a tristeza e melancolia transmitidas durante os 130 minutos dessa proveitosa sessão. A única certeza que sobra é que há um planeta em mim, há um planeta em você, há um planeta no universo. E o nome dele é Melancolia.

NOTA: 9

19 de outubro de 2011

Rent - Os Boêmios (2005)

Um filme de Chris Columbus com Adam Pascal, Rosario Dawson e Idina Menzel.

Anos 80. Anos de liberdade sexual, de liberdade sexual, do advento da AIDS. Anos que deram abertura para a vida boêmia. Nessa época de orgias e fantasias, onde o impulso grita mais alto do que a razão, como se pode sobreviver na sociedade capitalista, enquanto a divisão bipolar mundial se destroça? Como se sobrevive de sonhos, de aventuras, da música, do cinema e da arte sendo tudo alternativo, nada midiático? Perto dos ideais de não vender nada do que vem do coração e dos desejos, acompanhamos de perto um grupo de jovens com ideias na cabeça prontas para prática, sem medir as consequências dos atos e vivendo o ápice da boêmia. Mark Cohen (Anthony Rapp) é um jovem cineasta que filme tudo por onde anda. Seu maior problema é o relacionamento amoroso com Maureen Johnson (Idina Menzel), sua ex-namorada que agora tem uma relação com Joanne Jefferson (Tracie Thoms), uma advogada. Mark divide o apartamento com Roger Davis (Adam Pascal), um guitarrista que acabou deprimido após a morte de sua namorada e após descobrir que possui o vírus do HIV. Mas, a morte da namorada de Roger não impede os flertes constantes entre ele e sua vizinha, Mimi Marquez (Rosario Dawson), uma dançarina. Tanto Mark quanto Roger são ex-colegas de apartamento de Tom Collins (Jesse L. Martin), um gênio da computação que é apaixonado pela drag queen Angel (Wilson Jermaine Heredia).

Rent é um turbilhão de ideias e sentimentos coloridos variadamente para dar vida a características pessoais de amantes da arte, de amantes das ruas, de amantes da vida. Além de conflitos amorosos e amigáveis, ainda há uma batalha maior que é o a arte consumista, é o capital engolindo a beleza da simplicidade. O papel fica por conta do jovem idealizador corrompido pelo gosto do poder, Benjamin Coffin (Taye Diggs). Mas para suprir essa batalha física, ainda há as tensões emocionais vividas por cada um. Roger tem de aguentar o peso de sua namorada morta, aguentar o peso de seguir em frente, aguentar o peso de poder morrer a qualquer hora, de ter a vida baseada nos horários do AZT. Paralelamente, Mimi tem que aguentar o peso das drogas, de ter a necessidade de algo para lhe fazer bem e colocar substâncias ilícitas completando essa lacuna. Aguentar amar e não ser amada, e assim consumir cada vez mais. O casal, vivido por Adam Pascal e Rosario Dawson, é o que mais chama a atenção, tanto pelas cenas intimistas quanto pelo foco que o diretor Chris Columbus coloca em ambos. Veja e ouça ao mesmo tempo um flerte coletivo que ambos fazem no escuro, enquanto dialogam cantando Light My Candle. Depois de algum tempo, as músicas acompanham o relacionamento do casal em evolução. Prova disso é I Should Tell You.

"Hoje é pra você, amanhã é pra mim!". Disputando o centro das atenções, o elenco feminino duela bravamente com o masculino, e no fim todos saem iguais. Maureen tem a atitude e o sex appeal, enquanto Joanne e Mark cativam com características próprias de seus personagens traídos - uma cena especial é, por exemplo, o Tango Maureen, uma dança de traição interpretada deliciosamente por Tracie Thoms e Anthony Rapp. Mas Angel, de um modo ou de outro, rouba a cena. Talvez pelo destaque de sua personagem que sempre chegou a ser benevolente e foi um exemplo para os outros até quando não estava presente. E ele brilha na tela com razão, já que não é em todo filme comercial que um homem aparece vestido de peruca e salto alto, cantando canções amorosas. A trilha sonora e o roteiro, ambos do musical original de Jonathan Larson são divertidos e se adaptam ao tom emocional da sessão. Um grande problema presente em Rent é sua duração, com mais de duas horas, coisa difícil de aguentar atualmente. Mas são duas horas que acabam valendo a pena no fim com tanta beleza provinda da vida difícil de Nova York. A fotografia sempre clara de Stephen Goldblatt é o caos emocional vivido, são cores duelando na tela, um duelo de vermelhos vivos, de amarelos brilhantes e verdes gritantes.

Rent não é apenas um musical, é um filme de luta. É uma luta constante para poder conseguir manter seu talento vivo. É uma luta para achar igualdade, para achar aceitação. É uma luta para poder sobreviver de qualquer modo, seja na doença, seja na sociedade. Uma luta que vale bastante a pena ser acompanhada pelos boêmios idealizadores que se encontram em cada vielas com um talento inaproveitado. O elenco, numa sintonia invejável para interpretar todas as músicas, faz parte do original apresentado na Broadway, com exceção de Rosario Dawson e Tracie Thoms. As vozes estão afinadas e as músicas são diálogos interessantes, pontes necessárias para o funcionamento de um todo. Rent é a personificação da essência humana que permanece jovem em se interessar pelos seus princípios, que não se cansa até conseguir o que pretende e é interessada, desbocada e inocente. É a castidade da bravura, é viver o hoje e, caso ele chegue, viver o amanhã também. Mas uma dica? Vejam o musical se tiverem chance, é preferível ao filme. E viva La Vie Bohème!

NOTA: 8

5 de outubro de 2011

À Sangue Frio (1967)

Um filme de Richard Brooks com Robert Blake e Scott Wilson.

Traduzindo motivações para palavras, o homem permanece uma incógnita que permanecerá sem ser descoberta. A frieza humana provém do mesmo lugar que deu origem à bondade. E porque não se perguntam os motivos para ambos? Porque apenas o mal assume lugar nesse fim do devir, nessa decisão do bem e do mal, sem dar nenhuma chance das motivações boas se explicarem? Há bondade em impulsos considerados maldosos pela moral social? E como se define um psicopata numa sociedade? Todo o público que foi ver e ainda verá a obra de Truman Capote adaptada para o cinema sabe muito bem distinguir o certo do errado à partir de uma ideia perdurada da filosofia platônica. Mas é impossível sair do cinema balançado. Sabe-se que aquele ali é o certo, mas o final não poderia ser diferente?

À Sangue Frio é um filme baseado no romance homônimo de Truman Capote. Ele conta a história de Perry Smith (Robert Blake) e Dick Hickock (Scott Wilson), dois criminosos que começam a bolar um plano para roubar todo o dinheiro da família Clutter, uma família de fazendeiros ricos de Holcomb, Kansas, e assassinar todos os moradores da casa. Após a brutalidade do assassinato, que realmente ocorreu, o filme não para. Aos poucos ele mostra as motivações, as personalidades e a mentalidade dos dois criminosos, explorando tudo que os levou a cometer o crime.

O que difere essa obra de 1967 de qualquer outra que já tinha vindo é a aproximação do público com o lado antagonista do longa-metragem. Se alguém vai para o cinema e acaba simpatizando com um psicopata cuja única função no filme inteiro foi matar, roubar, estuprar, torturar e tudo isso à sangue frio, isso não é considerado normal se não houver um atrativo a mais para a caracterização do vilão. Mas quando o vilão nos é apresentado junto a sua ficha criminal e suas motivações para o caso e todo o psicológico é posto à prova, é difícil não admitir que o antagonista é que trouxe o carisma para a sessão. Primeiramente analisamos a visão de Dick, o homem que planejou tudo e apenas incluiu Perry em seu plano pela facilidade que ele tinha em perder a cabeça e matar. Dick fez tudo isso pelas motivações mais pífias que podem existir: conseguir dinheiro fácil, sair com as mãos limpas, apostar numa garantia inexistente na vida. É a despreocupação ambulante, que consegue improvisar caso algum plano dê errado. Todos os seus passos são movidos pela ganância e, após isso, pela aceitação. Desde que ele sempre esteja com um sorriso idiota no rosto, sempre com um ar superior aos demais até quando está por baixo. Ele não se deixa atingir e isso é fatal para ele. No fim do filme, o público chega a agradecer pelo final que lhe é dado.

Perry é o contrário disso tudo em apenas uma parte de sua consciência perturbada. O homem tem seu certo carisma e cria toda uma aura bondosa ao redor de suas ações que o público consegue adquirir simpatia pelo antagonista, e esse é um grande trunfo tanto do livro quanto do filme. Ao tornar o criminoso o psicológico principal do longa metragem, explora-se um lado desconhecido do espectador. Como se sente tamanha afeição por um homem que se mostra implacável, que consegue matar facilmente e prova isso aos poucos para a tela? Com uma delineação magnífica da redenção e de um perfil perturbado, ele chega a um ponto em que só se pode sentir pena. Há até uma revolta por causa do final de Perry, mas, analisando o crime apenas em teoria e não colocando o papel social sobre o homicida, ele não fez por merecer? Os atores principais merecem uma ressalva, tanto Scott Wilson, por criar tamanho ódio num drama concentrado para as telas; quanto Robert Blake, que é o lado emocionante e humano de À Sangue Frio. Há até uma certa química entre os dois em cena, por meio de palavras ou de ações, que não se concretiza explicitamente. Outro ponto que merece ser levado em conta é a fotografia de Conrad Hall, que até foi indicada ao Oscar de 1967. O filme, que é todo rodado em preto e branco, possui cenas lindas que se contrastam graças aos diversos tons escuros.

Uma das últimas cenas foca a face de Perry enquanto ele faz um discurso. Observar as gotas de chuva caindo pela janela dá a impressão sutil de que ele chora enquanto fala. É a humanização do monstro até por parte da natureza. Tudo em À Sangue Frio é carismático, é tocante e é enganador. É a visão de um criminoso que não se espera encontrar em cada esquina, um criminoso que é gentil, que respeita e que tem medo, por mais que tenha uma facilidade espantosa em matar. É a inversão de papéis feita por Truman Capote em seu livro que tornou Perry a vítima de todo o planejamento, enquanto a sociedade se mostrou cruel em não deixar ele sair impune. Depoimentos foram feitos para deixar o homem cada vez mais bondoso. Mas de que, afinal, adianta a bondade num equilíbrio para redenção dos pecados? E onde está a verdadeira diferença entre o pecado e as boas intenções?

NOTA: 9