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30 de abril de 2011

Cópia Fiel (2010)

Um filme de Abbas Kiarostami com Juliette Binoche e William Shimell.

Há um bom tempo vem sendo propagado no Brasil o chamado Centro do Teatro do Oprimido, encabeçado por Augusto Boal desde a década de 80. Essa prática, que possui várias vertentes, tem uma em especial chamada de Teatro Invisível, onde os atores saem pela rua e mostram aos transeuntes uma encenação, explicitando um problema social que muitos ignoram, sem deixar o público perceber que aquilo é uma cena e não uma discussão cotidiana resultante de uma forma de opressão. O efeito que o primeiro filme de Abbas Kiarostami que não se passa no Irã, sua terra natal, transmite à plateia é, na teoria, algo semelhante ao Teatro Invisível. Mas os objetivos são distintos. Enquanto o teatro tenta fazer a sociedade refletir sobre um problema em especial, Cópia Fiel é o retrato de uma situação extremamente ordinária, encenada para sair de sua zona de conforto e se transformar numa reviravolta original.
Elle (Juliette Binoche) é dona de uma loja de objetos sacros que se encontra com o escritor James Miller (William Shimell). O escritor, que se encontra na Itália para divulgar seu novo livro de nome Copie Conforme, acaba por prender a atenção de Elle através de suas palavras e interpretações sobre a arte atual. Para tornar o encontro mais agradável, Elle o leva para uma parte mais isolada da cidade de Toscana, onde ambos podem conversar em paz. Enquanto eles conversam sobre assuntos banais por meio de diálogos profundos, ocorre uma reviravolta nesse encontro entre desconhecidos que acaba por revelar algo impressionante no decorrer da trama.
O que é verdade, o que é mentira? Cópia Fiel te transtorna do início ao fim ao ver uma calma conversa, com tons de vozes alterados e com uma continuidade lenta pela não mobilidade entre idiomas, se transformar numa reviravolta tão brusca que o público fica desorientado até entender o que realmente acontece após uma cena tão comum quanto às outras. E tudo isso é tratado com um tom de bastante naturalidade para a câmera intimista de Abbas Kiarostami, por meio de closes no escuro, visões através do espelho e planos diferentes, tudo sem fugir da simplicidade que contorna todo o meio do filme. Os diálogos recebem o mesmo primor das cenas, tudo feito de forma tão natural que o filme pode ser tão maçante quanto encantador. Em certa cena, Elle e James estão conversando num carro, quando James diz que a arte é bastante relativa através de um exemplo que envolve árvores num campo. Através disso, há um convencimento de que tudo é uma arte, mas as pessoas reconhecem ainda mais as cópias aos originais, já que uma árvore, nunca igual a outra, não é reconhecida num campo, mas numa galeria ela certamente seria analisada fielmente.
Dialetos se misturam, as vozes se alteram ainda mais, os atores ganham mais espaço para transmitir sentimentos extremistas. Se metade do filme fica por conta de um roteiro que, de maçante, começa a prender a atenção de um espectador confuso, a outra metade fica por conta dos atores que possuem uma fortíssima defesa de personagem.William Shimell cria, ao seu redor, o expressionismo de um escritor intelectual, que conhece bem as palavras e sabe do que está falando, mas essa mesma expressão acaba adquirindo um tom antipático ao longo do filme. Juliette Binoche é uma atriz fantástica, e aqui ela prova essa afirmação. Sua personagem é tão verdadeira - ou seria simplesmente uma cópia fiel da verdade? - que não há cena em que ela não convença o espectador do que está acontecendo, e isso é importantíssimo na construção da trama. Afinal, tudo o que se passa é uma cópia fiel do início ao meio ou uma cópia do meio ao desfecho? Impossível saber, os atores mascaram a verdade e a cópia com tanta veracidade que pode-se acreditar em ambos, mesmo sem nenhum sentido. E isso fica implícito na forma com que eles lidam com o parceiro de cena: enquanto o homem, frio e racional, prova o tempo inteiro que uma cópia chega a ser bem mais interessante que a original, a mulher tenta contradizer que uma cópia não possui a mesma intensidade da verdade. E Elle, mesmo sem a experiência que fica implícita no caráter de James, se mostra bem mais concisa em sua fala, e é impossível olhar para ele quando ela está em cena.
Cópia Fiel é exatamente uma junção de dois filmes diversos que se passam na cidade de Toscana, onde Juliette Binoche e William Shimell se encontram com a mesma roupa mas em diferentes situações. A junção deles é que o torna um filme único. Sem tratar de um encontro com caráter romântico ou uma discussão pós-casamento de uma maneira inteiramente comum, Kiarostami une os dois e transforma situações reais numa cópia. No que você realmente pode acreditar quando está observando vidas alheias? O que seria um Teatro Invisível aqui? Talvez as duas partes, talvez nenhuma. Mas ele consegue fazer uma coisa em ambas: levar um show de interpretação ao público, que tem uma aula sobre o verdadeiro poder e a força de uma cópia inteiramente fiel.
NOTA: 9

26 de abril de 2011

A Bela Junie (2008)

Um filme de Christophe Honoré com Léa Seydoux, Louis Garrel e Grégoire Leprince-Ringuet.

Retratando uma juventude ultrarromântica no auge de seus desentendimentos e complicações no ramo sentimental, Christophe Honoré escreve aqui traços tortos por linhas retas. Onde ele poderia criar uma história simples contornada pela beleza dos resquícios de uma Nouvelle Vague deixada nas minúcias da atmosfera parisiense, ele constroi, através de casos da adolescência e da maioridade, uma vida baseada num sentimentalismo barato e efêmero que, quando se encontra com uma paixão verdadeira se perde completamente na fórmula já conquistada. Se vendo como um todo, A Bela Junie é um filme delicioso do cenário francês, mas detalhadamente a tortuosidade acaba por atrapalhar o andamento e o desenvolvimento dos seus 90 minutos por mais que Léa Seydoux e Louis Garrel se esforcem para os fazerem valer a pena.
Junie (Léa Seydoux) é uma menina de 16 anos que se muda para a casa de seu primo Matthias (Esteban Carvajal-Alegria) após a morte súbita da mãe. Ela começa, então, a frequentar a mesma escola do primo e conhece os amigos dele. Como a nova integrante do grupo, ela causa um certo rebuliço nas emoções dos diversos adolescentes românticos presentes, e acaba namorando Otto (Grégoire Leprince-Ringuet), um garoto apaixonado que não consegue entender a abrupta mudança de tom da namorada. Porém Junie, como uma perfeita sedutora, não para por aí, já que ela consegue despertar uma imensa paixão provinda do seu professor de italiano, Nemours (Louis Garrel).
O filme não é racional, é desde sua abertura até os créditos finais um conjunto sentimental que mostra por meio de ações, palavras e um silêncio arrebatador o quanto o desejo pode influenciar nas mais diversas condutas sociais. O amor é algo privilegiado e bastante conservado por todas as almas do filme, exceto pela protagonista melancólica. Enquanto diversas histórias de amor, paixão e desejo são mostradas com a personalidade dos outros personagens através das influências delas e das consequências de sua vitória ou seu término, Junie parece ser a única personagem racional do filme - e isso a torna tão distante daquela Paris deliciosamente amorosa que podemos confundir sua falta de crença no romance à flor da pele em apenas tristeza e bipolaridade. Incrível isso, a racionalidade acaba por encantar e convencionalmente destruir, de uma maneira terrivelmente cruel, os apaixonados. A atmosfera de paixão que Junie exala é traiçoeira, ela agarra alguém em sua rede apenas para mutilá-lo.
Christophe Honoré cria aqui, de um modo tão real, o universo dos dramas adolescentes ultrarromânticos que sofrem de crises existencialistas por um término e de depressão por uma briga. São jovens vivendo a melhor experiência de suas vidas, reconhecendo o amor em cada um de seus caminhos e agarrando ele como se apenas o coração lhes desse uma força vital. E tudo cheia a essas descobertas: a trilha sonora, a delicada movimentação da câmera, os lugares ordinários, porém belíssimos. A Bela Junie se mostra um filme de contrastes: há um contraste latente entre toda a cidade e uma única pessoa. Grégoire Leprince-Ringuet traz bons momentos à trama graças a seu poder de interpretação como o jovem indeciso e imediatista tendo seus primeiros contatos com o amor - e não sabendo controlá-lo. É engraçado ver que o casal formado por Louis Garrel e Léa Seydoux é bastante diferente das personalidades dos personagens, e aqui se concretiza. Garrel faz aqui um papel que transborda emoção e romantismo, de um professor que encanta as mais diversas mulheres com seu charme peculiar. A graça se dá quando ele e Léa Seydoux entram em cena juntos. Dessa vez, não é a mocinha que está entregue ao poder de sedução do professor, se dá exatamente o contrário. E Léa Seydoux, numa deliciosa atuação lúgubre, se entrega a sua personagem que se mantém longe de qualquer relacionamento.
Não conhecemos ninguém, nem mesmo as pessoas que amamos. Essa frase é falada por Otto em certa parte do filme, mas tenho uma pequena correção. Não conhecemos ninguém, principalmente as pessoas que amamos. O amor é traiçoeiro em seus diversos momentos e estágios. No momento em que nos achamos com as rédeas da situação, no momento em que sofremos uma desilusão, no curto momento em que nos entregamos completamente a um desconhecido. Junie é uma personagem controladora num mar de amores. E, mesmo assim, ela ainda consegue fazer esse mar secar se não deixar se entregar ao próprio coração. A Bela Junie é um filme exatamente sobre isso: desilusões amorosas e reviravoltas no coração, causadas pela entrega completa dos apaixonados por alguém que prefere brincar com sentimentos alheios a correpondê-los.
NOTA: 6

22 de abril de 2011

Amores Imaginários (2010)

Um filme de Xavier Dolan com Xavier Dolan, Monia Chokri e Niels Schneider.

A idealização é perigosa num relacionamento. Ela controla a mente de quem ama quando o assunto é a paixão que se sofre. Graças a ela, o apaixonado sente-se um alvo o tempo inteiro quando, na verdade, o alvo é quem está sendo idealizado. É um jogo de torturas, se você não tortura o outro com suas atitudes, as atitudes do outro te torturam por mais que elas sejam completamente simplistas e não tenham esse objetivo. E nessa rede cruel que prende duas pessoas no sentimento, a única coisa que se pode fazer é manobrar e ter cuidado para o coração não fincar tão fundo no corpo, pois quando uma idealização se quebra, pode ser cruel o bastante para os valores existenciais se destruirem. Xavier Dolan explora a vulnerabilidade de um relacionamento amistoso, mas que torce em seu âmago para se tornar algo mais intimista.
Francis (Xavier Dolan) e Marie (Monia Chokri) são grandes amigos que vivem em Montreal, no Canadá. Porém, no momento em que ambos conhecem Nicolas (Niels Schneider), a relação dos dois entra em choque graças a paixão que eles nutrem pelo novo integrante do grupo. Através de encontros, Nicolas começa a conhecer melhor Marie e Francis e cria laços de amizade, enquanto Marie e Francis nutrem a cada segundo uma forte paixão por Nicolas, que se torna uma obsessão idealizada para ambos, e corroem os laços já existentes entre eles.
Enquanto a paixões obsessivas dos três protagonistas vão se completando do início ao fim na tela, temos um relato de situações em nossa frente que nos identificam com nossos próprios relacionamentos e nossas próprias fantasias. Certa menina diz que, quando recebe um e-mail, no microssegundo entre clicar em "abrir" e nos decepcionarmos com uma propaganda da Amazon.com, milhares de coisas se passam pela cabeça e todas resultam na idealização da paixão. Outra garota fala que quem colocamos no pedestal sempre está certa, por mais irritados que estejamos com ela. As alucinações de apaixonados são deliciosas e cruéis ao mesmo tempo. Porque tantas pessoas buscam um sentimento que alimenta o fogo de dezenas e destrói a alegria de milhares? A única coisa que o homem conhece é a importância de amar e ser amado. Ao mesmo tempo em que temos em nossa frente o retrato de uma mente que prefere fantasiar a ver a realidade, a estética do longa é apaixonante. Vários planos que remetem às técnicas que Xavier Dolan usou em sua primeira experiência como diretor adquirem outro tom. Aqui, tudo é destrinchado minuciosamente: um beijo, um toque, um olhar. Tudo em fotografias coloridas e intensas, num figurino vintage, numa atmosfera indie, em planos de câmera lenta e nas visões idealizadas e subentendidas de cada personagem nos transmite a paixão e a dor de cada um.
Xavier cria aqui a marca de um tempo romântico de paixões e sofrimentos imaginários. Uma paixão real perdura, um sofrimento real perdura. E todos tem que buscar um pouco de realidade em cena para poderem viver da imaginação proporcionada pelo sentimentalismo. Tanto Francis quanto Marie são mostrados em relações sexuais casuais, insatisfeitos por não estarem com quem o corpo deseja. Mas ainda assim consomem o desejo carnal, pois não querem fazer um jejum por algo que não se concretiza. O fraco do jovem atual são os dramas apaixonantes. Eles inventam uma história de amor na cabeça e, com ela, dão duplo sentido à realidade. Eles não escapam dela, mas também não a enfrentam racionalmente. Vemos isso principalmente na transformação de Francis e Marie e na busca da atenção de Nicolas. Quando vemos, em nossa frente, uma moça ordinária com um visual único como Marie se tornar Audrey Hepburn em estilo e visual apenas para a realização de um fetiche que pode ou não dar certo, é que percebemos a paixão sem limites. Só precisa-se lembrar que o sentimento é forte, mas o tempo para ele ser consumido é curto.
Aqui, o desejo vira paranóia. Uma relação imaginária só pode existir se outra real for jogada fora, já que para os dois amigos não é possível amar competindo com a pessoa em quem você confia. Assim se forma um triângulo amoroso comum e triste. A primeira ponta possui uma Monia Chokri real que faz atos infantis o tempo inteiro, difama um amigo e se submete ao ridículo para apenas sentir a sensação de ser desejada o mesmo tanto que ela deseja. A outra ponta possui um delicioso Xavier Dolan que, em meio a atos patéticos e humilhantes no seu mar de paixão, ele busca uma cara metade para completar sua carência homoafetiva. A ponta principal desse triângulo é completada por um competente Niels Schneider que, no ponto de vista dos dois amigos, humilha e destrói os sentimentos alheios quando, na verdade, apenas busca um espaço menor do que o amor. E todo esse drama amoroso é completo por uma deliciosa trilha sonora que caracteriza cada momento apaixonante das ações e consequências dos jovens. The Knife, Fever Ray, Comet Gain e Dalida são os responsáveis por misturarem a música e fazerem dela o plano de fundo dessa melancólica história de um não-amor.
O ser-humano é uma compilação nítida de dores, rancores e desejos. Através de nossa experiência, vamos acumulando um peso que só nos acompanha pela vida, resultado de nossas paixões. Podemos superá-los, mas sempre compararemos e, provavelmente, o que mais dói é o que nunca se esquece. O que Dolan traz aqui nessa sua segunda aventura como diretor, roteirista e ator ao mesmo tempo - primeiramente no premiado Eu Matei Minha Mãe - é um relato de uma geração de amores que deixam sequelas por um tempo, mas são tão efêmeros que ainda não dá tempo de sentí-las. A coisa mais interessante é ver o retrato da natureza amorosa da minha época na tela, uma época de inseguranças baseadas em idealizações, uma época em que se sofre por paixões, mas não se deixa de se apaixonar.
NOTA: 10

20 de abril de 2011

Gilbert Grape - Aprendiz de Sonhador (1993)

 
Um filme de Lasse Hallström com Johnny Depp, Juliette Lewis e Leonardo DiCaprio.

O comodismo é algo bastante perigoso. Alguém, por se acostumar a viver por muito tempo numa situação, acaba parando de vez a vida numa rotina alienada, sem tempo para se pensar na própria vida. Assim se vira um acostumado altruísta, que pouco pensa em si mesmo, que nada muda em si mesmo, que, por mais que veja a situação ruim, ainda vive com ela se consegue fazer algumas coisas para se aguentar. O perigo aí é que, com qualquer sopro de vida próximo dessa "morte", com qualquer sinal de mudança vindo, a rotina e o costume se tornam insuportáveis.
Gilbert Grape - Aprendiz de Sonhador é o filme de um jovem tão consumido com o que decidem para a vida dele que não tem tempo de pensar se é o que realmente quer fazer. Gilbert Grape (Johnny Depp) vive em Endora, uma cidade pequena e tediosa, e trabalha numa mercearia. Após o suicídio do pai, ele se vê como a figura central da família. Ele que sustenta a casa, ele controla as irmãs e ele tem de cuidar da mãe obesa (Darlene Cates), que come compulsivamente desde a morte do marido, e do irmão Arnie (Leonardo DiCaprio), que é deficiente mental. Ele vive nessa rotina em sua cidade, sem nenhuma novidade surgindo. Até que Becky (Juliette Lewis), uma forasteira que viaja pelos Estados Unidos com sua avó, chega na cidade de Endora e começa a fazer as decisões de Gilbert surgirem e modificarem sua vida.
O maior trunfo do filme é seus personagens e a defesa deles por atores bastante competentes. Juliette Lewis faz um bom papel aqui, seu personagem aparece sempre na tela como um constraste de Gilbert Grape. Enquanto ele representa a prisão em determinada situação, ela é a liberdade. O personagem de Juliette, nesse caso, me lembrou bastante outra Juliette, só que nesse caso a Binoche no filme Chocolate de 2003, que também tem Johnny Depp no elenco e Lasse Hallström na direção. Johnny Depp já está um nível acima de Juliette Lewis, tem uma atuação competente e a defesa de seu personagem é totalmente baseada em sua vida comum e possui motivações críveis o bastante para fazer o filme funcionar. Não vejo um protagonista que se encaixaria melhor. Porém, por mais que Gilbert Grape tenha o foco principal das câmeras e que ele até exale um certo carisma em sua timidez, o verdadeiro astro do filme é Leonardo DiCaprio. Irreconhecível, na sua pele de deficiente, e no auge de seus 19 anos, ele dá um show de atuação que não se acha novamente nos filmes seguintes de sua carreira.
Aqui, o roteiro consegue deixar a desejar bastante. Ele traz boas ideias, que podem ser facilmente identificadas com o dia a dia de qualquer um, seguindo uma rotina traçada e planejada. Aliás, quem nunca sentiu a vida predestinada que atire a primeira pedra. Não se pode se acostumar numa situação por muito tempo. Gilbert cresceu numa situação e vive na mesma. Ele vive na mesma casa, sem nunca se mudar. Ele vive na mesma cidade, sem nunca ter ido a outro lugar. Ele não compra em outros lugares que não a sua mercearia. Ele vive a vida dos outros, nunca a sua. Um exemplo disso é que a função dele é cuidar do irmão incapacitado. E nessa tarefa, ele não pode se distrair nem por um instante. As primeiras cenas do filme são primordiais para esse entendimento. Se Gilbert se distrai por pouco mais de 3 minutos, Arnie sobe numa caixa d'água, e a responsabilidade e a vergonha caem para o irmão mais velho, a fonte de sustento para a família. Com o suicídio do pai, sua vida se torna quase irreversível, já que os tempos vagos que ele tinha com o irmão sobraram para ele trabalhar e sustentar a fome da mãe.
A mudança causada pela chegada de Becky se dá de forma fantástica visual e metaforicamente no filme. O filme é um conto real de como a mudança é necessária para fazer a vida seguir em frente e não ficar parada dando voltas infinitas. Tudo é movido por alguma mudança, um marceneiro só trabalha se achar o que se conserte, um vendedor de caixões só trabalha se achar alguém que morra. E quando a vida é parada demais para qualquer mudança acontecer, ela é uma morte. Como um cartaz de Gilbert Grape ainda diz, é uma coisa horrível ficar dormindo a vida inteira. Se você não vive, você acaba num ciclo, seja de vaidade, seja de preguiça, seja de comodismo. Todos precisam de uma Becky como exemplo, uma Becky para ser um sopro de vida e alegria, uma Becky para servir de exemplo de livre arbítrio, uma Becky para os relacionamentos afetivos se tornarem mais concisos, uma Becky para o tédio passar. Por mais que as melhores atuações não venham de Juliette Lewis, é uma graça vê-la na tela, seguida de uma fotografia belíssima por campos desertos e iluminada pôres do sol estonteantes.
Aproveite a vida. A Sociedade Dos Poetas Mortos já dizia isso nos ensinamentos não ortodoxos de Robbie Williams. Gilbert Grape vem para reforçar a ideia e deixá-la mais sólida. Ela é preciosa demais para deixarmos passar e vivermos na mesmice. Então aproveitemos oportunidades, fujamos da rotina, saibamos como não desperdiçá-la até o último momento. Cada momento é valioso e cada mudança é necessária. Não há como se viver por muito tempo se você recicla uma vida que já está desgastada. A obra otimista de Hallström é necessária para uma ideia que nunca é velha demais para o mundo atual. E, por mais que o tema já esteja caindo no clichê, ainda é bom ver uma atuação perfeita de um Leonardo DiCaprio novo e impecável.
NOTA: 8

16 de abril de 2011

O Iluminado (1980)

Um filme de Stanley Kubrick com Jack Nicholson e Shelley Duvall.

Here's Johnny! Quando Jack Nicholson, numa atuação impecável, fala essa frase icônica no clímax de O Iluminado, já estamos com tanta pressão em nossa cabeça para acompanhar as cenas anteriores e as que ainda virão que sabemos que o filme ficará marcado. E ficou. Gostaria de ver um adulto, que assistiu o clássico do terror Psicose nos anos 60, e um adolescente, que assistiu o mesmo filme nos dias de hoje. Não se pode negar os efeitos do cinema de Alfred Hitchcock, mas não será a mesma coisa. Pânicos e Massacres da Serra Elétrica escracharam o terror num show sangrento. Agora acho que a reação entre duas pessoas de épocas distintas diante de tamanha obra como O Iluminado seria a mesma. O filme se utiliza de um terror psicológico sem igual, gerado por distúrbios do isolamento e da solidão, do convívio diário e cansativo, da sensação de prisão. E tudo permanece atual.
Jack Torrance (Jack Nicholson) acaba se interessando em ser o vigia de um hotel no Colorado durante a temporada de inverno, já que com a solidão dessa época poderá, finalmente, ter tempo para escrever seu livro. Ele, para não ficar inteiramente sozinho, vai com sua mulher Wendy (Shelley Duvall) e seu filho Danny (Danny Lloyd). Porém, enquanto os dias passam, o isolamento começa a corroer Jack, que fica cada vez mais solitário para conseguir escrever algumas palavras de seu livro. Ao mesmo tempo, Danny começa a ter visões do passado do hotel, onde um terrível assassinato ocorreu.
As atuações tem seus altos e baixos, para um perfeito contraponto. Jack Nicholson esteve possuído para fazer esse personagem, não há outra explicação. Suas manias, suas ações, todos os seus movimentos captados por uma câmera bastante intimista, a defesa dele na pele do próprio personagem, a loucura proveniente do isolamento, tudo é perfeitamente interpretado por Nicholson, ele é com certeza um grande fator para O Iluminado ser o clássico que é atualmente. Sua atuação visceral transmite tanto medo quanto o filme em si. Agora se tamanho talento de Nicholson é desculpa para a falta dele em Shelley Duvall, isso eu já não sei. Não que ela seja ruim, mas não dá para suportar suas facetas exprimindo felicidade e medo na mesma cena que o marido, tudo que ela faz parecia tão forçado que poderia até comprometer o filme. Ainda bem que o filho puxou os genes do pai, Danny tem uma interpretação ótima para uma criança, e suas cenas demonstrando a perturbação entre flashbacks de uma chacina são fascinantes.
A direção de Kubrick é um diferencial importantíssimo para o filme, já que suas diversas tomadas são necessárias para que o medo idealizado por King se transmita nas telas de cinema. A câmera, irriquieta, consegue aos poucos mostrar todos os ângulos possíveis do terrível hotel onde a família está confinada. A movimentação dela consegue criar uma atmosfera tão interessante nas cenas que nos sentimos bem perto, explorando o ambiente e nos envolvendo com os personagens. Por mais que seja um clássico do terror e do suspense, a fotografia é mais clara do que escura, não há blackouts para encobrir mistérios e segredos. Afinal, se alguém for ver O Iluminado esperando um banho de sangue e de coisas sobrenaturais, pode até sair desapontado. Elas estão presentes, mas o roteiro adaptado não permite tamanho aprofundamento em certos aspectos, como as visões do garotinho ou o fato de Jack ser um alcoólatra, o que foi bastante criticado por fãs de Stephen King.
Tudo no filme leva ao desfecho, o que não tira os méritos de perturbação das outras cenas. Além do mais, essas cenas são exatamente a base para o que está por vir. Podemos falar o que quisermos de uma vida solitária, mas não dá para aguentá-la completamente sem sofrer algum distúrbio. A sociopatia, algum modo de introspecção, alguma maneira de evitar a sociedade. E o mais suscetível a esse isolamento doentio é Jack. Ele começa a desenvolver uma agorafobia no auge de sua insanidade, já que não permite a aproximação de ninguém no ambiente sacro representado pelo hotel amaldiçoado, assim como sua saída desse lugar pode ser a morte. E, paradoxalmente, ele desenvolve uma claustrofobia do ambiente de vida, precisando de uma mudança constante para continuar se mantendo são psicologicamente. Ele não consegue lidar com o fato de ter um bloqueio em sua veia criativa, e coloca a culpa na fragilidade da mulher e nas doenças do filho, que lidam com a situação com medo. E, quanto mais perturbado ele fica, mais o hotel adentra em sua mente fazendo-o crer em alucinações e lidar diferentemente com a situação. O trabalho fala mais alto que suas relações pessoais. Mas muito trabalho e pouca diversão fazem de Jack um bobão.
Há sempre aquela frase preferida no fim de uma sessão proveniente de uma adaptação, "o livro é bem melhor". Quando o filme é adaptado de uma obra de Stephen King, tudo piora. Não conheço outro escritor que consegue transmitir tamanho medo através de páginas como esse mestre. E é bem difícil colocar essa mesma sensação dos livros para as telas. À Espera de um Milagre, Carrie, A Estranha, O Apanhador de Sonhos, It, Christine - O Carro Assassino, por melhores que sejam, nenhum trouxe o mesmo horror da versão original. Mas sempre existe uma exceção, e claro que para conseguir superar o livro, tinha de ser de um gênio do cinema. A versão original do cinema de O Iluminado, dirigida pelo mestre Stanley Kubrick, não conseguiu críticas positivas na época em que foi lançada, porém hoje já é considerado o épico do cinema de horror. Com razão certa, ao contrário de filmes que envelhecem com o tempo, O Iluminado permanece igual aos livros de King: um clássico atemporal.
NOTA: 10

13 de abril de 2011

Sozinho Contra Todos (1998)

Um filme de Gaspar Noé com Philippe Nahon.

O diretor franco-argentino Gaspar Noé pode ser considerado um dos mais incômodos e angustiantes da atualidade. Ele não se contenta em apenas apontar para um certo lugar para o público perceber que há um problema, ele precisa mostrar e explorar da maneira mais vil e vulgar as mazelas sociais. Ele cria uma atmosfera de tensão que intimida o espectador durante toda a sessão, fazendo a estética se voltar contra quem assiste o filme. E ele aborda tabus tão profundamente que ele faz algo pior do que enojar o espectador: ele cria personagens de forma a fazer o incorreto, segundo a sociedade, parecer extremamente aceito. Essa obra é uma abordagem crua e diferente de uma temática já condenada com base numa alma perturbada pela solidão.
Como uma continuação do média-metragem Carne, Sozinho Contra Todos conta a história do açougueiro (Philippe Nahon), um homem frio e violento que carrega em seu íntimo uma fúria infinita, que é descarregada aos poucos no mundo em sua volta e na podridão de cada detalhe dele. A história aqui se faz depois do primeiro episódio, onde ele desfigura um homem que teria supostamente abusado de sua filha Cynthia (Blandine Lenoir). Depois disso, ele sai de Paris e o retrato que vemos dessa criatura perturbada é uma análise profunda do ser humano no auge do seu pessimismo e vulgaridade, sem escapar em momento algum, do mundo real.
Engana-se quem vai ao cinema de Noé e procura ver uma Paris retratada em moldes românticos, com tons vermelhos vivos cheios de paixão, com mentes que se contentam na felicidade eterna e personagens que buscam apenas vivenciar um sonho. Aqui tudo é real. Se é cruel, se é terrível, se é repulsivo, isso tudo é fruto da realidade que construímos em cima de uma situação específica. Os 90 minutos da sessão tratam das sequelas de uma vida solitária, com uma narração em off acompanhada por diálogos profundos de existencialismo, uma fotografia enjoativa em diversos tons amarelados e sem qualquer trilha sonora ou uma movimentação constante da câmera que permanece parada. Philippe Nahon é um monstro em sua atuação impecável e fria. Ele consegue criar um distanciamento do público que anseia por um protagonista nessa história tão incômoda e, durante todo o tempo que ele aparece na tela, todos os sentimentos giram em torno do nojo dos pensamentos. É um molde da pior doença de um ser-humano, e ela se chama vida. E quando essa doença ainda é complementada com o "dom" do pensamento, ela vira uma tortura.
Aguentar Sozinho Contra Todos chega a ser torturante. A simplicidade dessa afirmação se concentra no fato do que é representado no filme. As pessoas que utilizam os filmes de modo escapista dificilmente veem o filme de Noé até o fim, porque tudo lá é feito com tamanha veracidade misturada com a podridão da vida na miséria que o resultado nada mais é que uma realidade aprofundada, literalmente, no fundo do poço. O vocabulário do protagonista não é exatamente o apropriado e o mais utilizado para questões filosóficas, tal como viver e sobreviver. A mente do protagonista não pode ser qualificada de equilibrada ou normal. E tudo isso com uma razão. Para que continuar explorando a beleza rara de paixões num mundo hostil? Vamos pegar um exemplo do mundo e mostrar para o espectador o que ele é, em sua pior forma. Vamos enojá-lo com a verdade, até ele sair no meio da sessão de diálogos e ações doentias, mas fortes.
O filme inteiro fica a mercê de um único personagem, motivado por uma mente que incomoda mais do que agrada. Para que fazer um filme assim? A pergunta do diretor já é diferente: Porque não? Em certo ponto, um aviso surge na tela, dizendo que temos 30 segundos para sair da sessão e vivenciar o ápice daquele festival de loucura e medo. Tudo no filme é gerado por tamanha solidão que deixou uma pessoa viver com seus piores pensamentos, que ele tivesse tempo o suficiente na mediocridade da vida para pensar em assuntos que deveriam permanecer impensados no subconsciente. Não importa o que se diga sobre Sozinho Contra Todos, não importa o que se leia sobre Gaspar Noé, não importa o quanto eu fale sobre Philippe Nahon e a estética do filme, nada terá o mesmo peso se não for vivenciado. Mas se prepare para realmente vivenciar a dinâmica insana de realidade desse filme.
NOTA: 8

10 de abril de 2011

Taxi Driver (1976)

Um filme de Martin Scorcese com Robert DeNiro, Jodie Foster e Albert Brooks.

Pedras e paus podem quebrar meus ossos, mas palavras não podem me machucar. Sendo assim, como se lida com o silêncio, essa força tão destrutiva que chega a corroer mentes paulatinamente? A loucura bate à porta das mentes que contém alguma falta, seja a de palavras, seja a de companhia, seja a de razão. E essa falta precisa ser completada, quando a insanidade chega a seu ápice, criando sociopatas, alguns atingindo o nível da psicose, de forma que a ética e a moral humanas não falam mais alto do que um desejo ensandencido, na busca de completar lacunas vazias numa mente incompleta. Taxi Driver é o estudo violento e épico da solidão, sobre como ela age num ser-humano indeciso e chega a destruí-lo, por uma falta de convivência com situações cotidianas.
Travis Bickle (Robert DeNiro) é um veterano da guerra do Vietnã que anda o dia inteiro pelas ruas da caótica Nova York como um motorista de táxi, a pessoa mais vulnerável e que convive com os mais diversos habitantes das diversas camadas e bairros da cidade. Seu convívio supérfluo com o contraste social das ruas distintas de Nova York junto com sua solidão o levam a uma vida perturbada, enclausurado no estereótipo do taxista que observa as escórias. A sua profissão cruza, então, seu caminho com o de Betsy (Cybill Sheperd), uma ativista eleitoral do senador Palantine, candidato à presidência; e o de Iris (Jodie Foster), uma prostituta de apenas 12 anos de idade.
O grande problema de Travis é, indubitavelmente, sua vida solitária. Ela o leva para um transtorno que não consegue mais identificar o certo e o errado num padrão abrangente e generalizado, mas apenas no padrão dele. Ele é tão perturbado que leva a namorada para ver um filme no primeiro encontro. Pornô. O mundo de Travis permanece intocado, por mais que ele conviva com o máximo de pessoas possíveis. Além do mais, esse convívio com diferentes personalidades pode até ajudar na loucura resultante após tantos momentos solitários. A cidade de Nova York é cheia de habitantes vazios. Por mais rodeados, todos estão tão sozinhos que, quando param por um bom tempo para realmente refletir sobre a própria realidade, acabam insanos. Os diálogos entre Travis e outros taxistas mostram mentes tão perdidas quanto a dele, mas escondidas através da banalidade de situações do dia a dia. A mudança do dócil taxista para o perigoso sociopata ocorre em consequência de coisas relativamente simples de serem evitadas. E essa metamorfose não é apenas acompanhada pelo espectador. Através dos diferentes planos de filmagem de Martin Scorcese com as cenas cada vez mais chocantes do jovem Robert DeNiro, o público acaba por compartilhar um sentimento idêntico ao do taxista revoltado.
O perturbado Travis é mostrado com tanta intimidade e sutileza para a câmera que cada movimento dele, por mais surreal que seja, acaba sendo acostumado com o padrão. Por isso seu personagem acaba sendo identificado como o herói de Nova York. Suas ações, cada vez mais ambíguas, podem tachá-lo também como vilão. Mas seria vilão aquele que consegue enfrentar um sistema inteiro e gritar a plenos pulmões a partir de atos impensados o que cada habitante quer dizer, mas não diz por uma acomodação à neurose, ao stress e às normas para a convivência? Como vivia sem convivência, no seu universo repleto de solidão, não é preciso ter normas para se seguir aí. Ele é ingênuo por não saber como se viver graças as suas sequelas? Ou ele é esperto o suficiente para ser cínico e irônico em seus atos e diálogos inocentes? Ele é sincero o bastante para falar na cara de um senador como ele poderia destruir toda a sujeira daquela cidade. Ele é ingênuo o bastante para levar a namorada a uma sessão pornográfica. Ele é corajoso o bastante para tentar, com todas as suas forças, criar um ambiente seguro para uma prostituta, a mesma escória da sociedade que ele tanto criticava. A mudança constante dos pensamentos de Travis caracteriza a única semelhança entre ele e a sociedade. A sociedade acaba por martirizar aquele que deveria ser condenado num sistema completamente bipolar em seus atos.
Aqui, a técnica também é sinônimo de perfeição. A fotografia de Taxi Driver beira um tom mais boêmio e noturno, das vielas obscuras e sombrias da selva de pedra. Explorando os mais diversos personagens atravessando os subúrbios nova-iorquinos, a fotografia escura com tons avermelhados e amarelos piscando combina bem com a trama. A trilha sonora de Bernard Herrmann é sensacional, caracterizando o ápice da fascinante viagem que é essa obra de Martin Scorcese. A direção de Scorcese é precisa em suas diferentes formas, seja num relato silencioso da rotina de um taxista notívago, seja no barulho de uma mente condenada ao silêncio. A interpretação também é de ouro. Um jovem e carismático Robert DeNiro dá aqui um show de atuação que não vemos atualmente nesse novo rumo de sua carreira. Jodie Foster já mostrava para o que veio desde os seus 14 anos, onde com uma lábia surpreendente para a idade interpretou uma garota de programa e conseguiu ser indicada ao Oscar do ano seguinte. Harvey Keitel, Albert Brooks, Cybill Sheperd e Peter Boyle ainda agraciam essa obra com ótimas defesas nos seus personagens, com inteligência, fúria e razão equilibradas numa base que deveria ser de desequilíbrio.
O auge de Taxi Driver se concentra numa famosa cena, lembrada por muitos quando o nome do filme é citado em alguma discussão. Por curiosidade, essa cena foi feita completamente no improviso. O jovem Travis discute, com uma Magnum 44 na mão, num quarto, solitário. "Você está falando comigo? Está falando comigo? Se não comigo, com quem está falando, hã? Estamos sozinhos aqui", isso tudo com uma expressão de raiva e superioridade na face. Vemos, então, que o interlocutor é um espelho e que ele aponta a arma para a própria figura. Travis é tanto um protagonista quanto um antagonista num retrato não de um personagem apenas, mas de toda uma sociedade incompleta, perturbada e solitária. O personagem de DeNiro é apenas o bode expiatório do relato cru de Scorcese sobre o teatro da solidão humana.
NOTA: 10

Selinho

É com grande satisfação que o Crítica Mecânica recebe mais um selo de dois amigos e parceiros do blog: do Luiz Santiago e do Rodrigo, dos igualmente ótimos Cinebulição e Um Amador no Cinema, que valem mais do que uma simples visita. Agradeço a ambos e espero continuar fazendo um bom trabalho aqui.

Como parte das regras, indico mais cinco blogs que, ao meu ver, também merecem esse reconhecimento:
Apimentário;
Cinegrafia;
Bastidores;
Cinema - A Arte da Emoção;
Película Criativa.

7 de abril de 2011

Cidade Dos Sonhos (2001)

Um filme de David Lynch com Laura Harring, Naomi Watts e Justin Theroux.

Há tempos que, em virtude do sistema, o homem se tornou completamente descartável, apenas mais um produto, fruto da concorrência desonesta e da especialização trabalhista. Ainda há quem tente burlar essa crueldade baseada numa cadeia já criada antes mesmo do nascimento. Nosso destino já está decidido, já que viveremos escravos do capitalismo até o fim, trabalhando, ganhando dinheiro, gastando e trabalhando, num círculo vicioso, até nos tornarmos absolutamente inúteis. O fato de viver dos sonhos constituí um fator quase fantasioso para a realidade, já que a atitude escapista deles é algo tão inconsciente e íntimo que quase é esquecido por quem se aliena todo dia para não ser esmagado pela crescente evolução. Como os sonhos sobrevivem em decorrência da realidade? O embate épico entre ambos é claro e perdura ao passar do anos. O que David Lynch faz nessa obra é acentuar o contraste entre a dimensão dos sonhos e a realidade crua. Qual é mais agradável para o protagonista, qual é mais agradável para o público?
Uma mulher (Laura Harring) acaba de sofrer um acidente de carro na famosa rodovia Mulholland Drive. Ela, como a única sobrevivente da tragédia, sai desorientada para Hollywood com uma sequela: ela não consegue se lembrar de nada anterior ao acidente. Com essa sua amnésia, ela entra numa casa qualquer e acaba ficando por lá, dormindo e esperando que a memória volte. Nessa mesma residência, Betty Elms (Naomi Watts) vai morar, para tentar fazer seu sonho de ser uma atriz reconhecida se realizar. Ao conhecer a mulher, que assume o nome de Rita, ambas procuram saber mais sobre o que aconteceu antes da colisão, já que a bolsa da mulher misteriosa contém uma chave azul, além de milhares de dólares. Ao mesmo tempo, o diretor Adam Kesher (Justin Theroux) tem de resolver um impasse na escolha do elenco em seu novo filme.
O que observamos nessa primeira parte do filme é uma cidade composta inteiramente de sonhos. Os sonhos são bastante importantes para o funcionamento de Hollywood, os habitantes de lá são movidos por eles. Vemos, já no início do filme, a confiança e o medo baseados nas fantasias produzidas pelo subconsciente por vários exemplos, que após algum tempo retornam em outras cenas. David Lynch é esperto, tudo o que ele joga na tela tem um motivo para estar ali e nenhum personagem sofre com o desuso de sua imagem na duração da obra. Em meio a contrastes de personalidades e um aprofundamento dos protagonistas, somos apresentados a uma situação principal. Betty chega em Hollywood para realizar seus desejos. O principal sonho dessa aspirante à atriz é ter seu rosto nas telas de cinema, assim como sua tia, a famosa atriz Ruth Elms. E Betty se mostra brilhante. Uma ótima atriz, uma ótima amiga, divertida, com soluções sempre úteis, com uma força de vontade única, com personalidade para ser o centro das atenções naturalmente, com coragem e atitude. Isso é realmente algo natural saindo dessa menina que se destaca como o cúmulo da perfeição em caráter? Betty é necessariamente a mocinha? O filme apenas confirma...
Como um contraponto à personalidade da anfitriã, Rita se mostra a desprivilegiada. Ela é confusa, ela é incapaz de realizar qualquer tarefa sozinha, ela depende de Betty para tudo, ela se mostra o elo fraco, a medrosa, a perseguida, a duvidosa, a misteriosa. Todas as desgraças caem em Rita e toda a história dela não desanima Betty, apenas a faz viver como se ela estivesse dentro de um filme policial o tempo inteiro. Não há como perder o pique diante da história das duas, por mais trágica que seja não saber absolutamente nada do próprio passado. Lynch, porém, faz tudo calculado em sua estratégia para transformar Cidade Dos Sonhos numa obra sem igual. Jogando na tela várias pistas para a compreensão do que está por vir, ele mascara uma história contendo velhinhos maliciosos, um monstro escondido atrás de uma lanchonete, um caubói filósofo e uma atriz de cinema feita sob medida na trama da busca pela memória. Não se engane, tudo o que você vê, por menos lógico que seja, vai ser usado enquanto o filme estiver rodando. Exatamente como Magnólia, de Paul Thomas Andersson, fez em 1999 para explicar através de metáforas seu final dúbio.
Silencio. No hay banda. No hay orquestra. Prepare-se para a reviravolta. Não há como acreditar em tudo o que se vê, especialmente quando você se encontra num ambiente feito inteiramente por sonhos. O diretor grita isso para seu público confuso após a rede de tramas, que antes parecia tão correta e desfeita, e se mostra mais emaranhada do que nunca. E isso resulta numa explosão de imagens e informações novas, jogadas com a mesma intensidade das já mostradas na primeira parte do filme. Não se pode comparar um ambiente fantasioso com um ambiente real. Por incrível que pareça, os sonhos são mais reais do que a realidade. Então entramos no psicológico. Freud disse que tudo o que vemos fica armazenado em nosso inconsciente, principalmente as experiências traumáticas, as que queremos esquecer. Porque não as mudamos? Porque não fazemos igual aos românticos literários e procuramos uma evasão em nossos sonhos? Nada melhor do que fantasiar, nada pior do que viver. Enquanto a realidade pode ser fria demais para se aguentar, nós manipulamos os sonhos de acordo com nossas vontades reprimidas. Nós escolhemos a história. Nós decidimos a personalidade de cada um, nós decidimos nossa própria personalidade, nós decidimos nomes, lugares, situações e consequências. Nós decidimos nossa própria realidade. E quando você pode escapar da hostilidade crua que é a vida, quem vai querer enfrentá-la?
Após chocar toda uma lógica com seu contraponto e apresentar um filme que se transforma constantemente, de linearidade para flashbacks, de uma fotografia clara para um escuro íntimo, de personalidades alegres para depressivas e culpadas, Cidade Dos Sonhos permanece ainda como obra para o entendimento humano. Uma vida pode ser retratada inteiramente no filme, com exemplos claros de desilusões amorosas, abuso do poder, dupla personalidade, inveja, ciúmes, tristeza e loucura. O que menos esperam é que numa cidade feita inteiramente de sonhos, a realidade se esconde na forma do que menos esperamos, seja uma apresentação que revela todo o caráter da trama, seja um monstro, mas um monstro real esmagado pela finitude imaginária.
Quando haverá outra obra que caracterize tanto uma cidade de sonhos e que consiga juntar isso com ambições insanas e com a verdadeira faceta escondida atrás da fantasia? David Lynch cria uma brincadeira baseada num contraste entre a consistência de um universo onírico e o pesadelo da insanidade real, tudo com base num psicológico que procura alguma forma de catarse que não se baseie na realidade, mas nos sonhos. E seu quebra-cabeça ainda consegue ser interessante ao se montar, pois uma peça pode encaixar em dois lugares diferentes. Cidade Dos Sonhos é um filme para se assistir mais de uma vez, sempre que possível, para novas interpretações serem abertas, novos aspectos serem descobertos, e que o público se sinta cada vez mais um personagem da rede de mentiras e cada vez menos um espectador. Aqui, a quarta parede deve ser quebrada, pois o filme não é para se digerir racionalmente, mas se sentir.
NOTA: 10

3 de abril de 2011

Chicago (2002)

Um filme de Rob Marshall com Renée Zellweger, Catherine Zeta-Jones e Richard Gere.

Bem vindos a um retrato irônico da sociedade atual. A crescente onda de violência no mundo está aqui arraigada no lado de criminosas que almejam apenas uma coisa: fama. Se a liberdade vier com isso, melhor. Nem sempre o reconhecimento vem seguido de uma arte, de uma consequência de um trabalho árduo, a não ser que homicida seja uma profissão a partir de agora. E o desejo aqui não é calado. Desde o começo, Chicago mostra uma obsessão na fama, no brilho e no glamour. Seus personagens querem ser vistos, não importando a façanha. A combinação entre essas pessoas, uma peça famosa dos anos 70, bom humor e um ritmo envolvente de jazz em meio ao alegre ambiente de vedetes resulta numa experiência musical única, vista pouquíssimas vezes nos últimos anos.
Roxie Hart (Renée Zellweger) é uma ex-corista que faria tudo para ver seu nome brilhando em manchetes e em letreiros, já que seu sonho é a fama adquirida por meio de seu estrelato no showbiz. Ela é capaz de cometer adultério compulsivamente para se igualar a seu ídolo, a famosa vedete Velma Kelly (Catherine Zeta-Jones), que acaba com seus shows após matar a irmã e o marido. Quando Roxie vê que seu amante não ajuda seu desejo a se realizar, ela o mata e vai parar na prisão feminina, onde encontra Velma. A hierarquia da cadeia é fácil de ser entendida, já que Mama Morton (Queen Latifah), a corrupta diretora da prisão, estabelece logo o lugar de cada uma. Roxie percebe que a única chance de sair é comprando Mama Morton para que ela lhe consiga Billy Flynn (Richard Gere), o advogado que promove as assassinas e as torna em queridinhas da mídia.
A promoção de crimes se torna um fator importante para o bom funcionamento do musical. Em certa cena a personagem de Queen Latifah diz que, em Chicago, crime é entretenimento. O sarcasmo que exala das cenas seguintes confirma isso. Com um bom humor, o personagem de Richard Gere trata todo o espetáculo da mídia e do julgamento como um ato de circo, de modo que, por mais que as assassinas não apareçam mais na mídia após os julgamentos, ele sempre se sobressaia e continue em alta no mercado graças a sua promoção em cada caso que leva. A inteligência de Billy é um contraste com a sede de Roxie. Após matar o amante e aparecer nas capas de jornais, ela percebe que seu sonho se realizou. Não do modo que planejava, mas o resultado foi o mesmo. E assim que viu seu nome sendo falado por toda a cidade, ela não quer mais voltar atrás como a menina ordinária e sonhadora. Assim que pega uma fatia, Roxie deseja agora o bolo inteiro. A diversão se confirma nos números seguintes. Na cena em que Billy se mostra um ventríloquo e Roxie, junto com os repórteres, se mostram as marionetes, o sarcasmo se firma numa autopromoção feita a partir da "indústria" criminalística, que cria uma nova "atração" para o mundo a cada homicídio.
Tudo de Chicago é deslumbrante, mas há alguns problemas em sua execução para o cinema. A peça da Broadway se tornou uma peça da Miramax, já que Chicago se mostra mais teatral do que cinematográfico durante suas quase 2 horas. Isso não se torna um problema no geral, já que é até agradável para o espectador que vai ao cinema para ver o filme brilhante ganhador de 6 Oscar. Mas com brilhante eu não digo que é genial, mas que ele brilha. Tudo dentro do filme brilha, - os cenários variados entre uma casa de shows especializada e uma penitenciária feminina, as roupas que mostram o máximo possível das principais dançarinas, as músicas que se encaixam no tom irônico trazido pelo longa - mas alguns aspectos conseguem retirar o êxito obtido por essa obra criminosa.
Se o filme fosse apenas um drama, talvez Renée Zellweger teria se sobressaído em sua atuação composta apenas por caras e bocas variadas e uma ingenuidade até engraçada para o funcionamento da trama. Mas, como o filme é um musical e a protagonista é a desengonçada Zellweger, não há muito aproveitamento nas cenas em que ela aparece cantando e dançando. Catherine Zeta-Jones se mostra perfeita durante o filme, que acaba se tornando um show para ela mesma, no auge de seu talento e de sua força, mostrando sua técnica para dança e canto numa oposição drástica à Renée. Nas cenas em que ambas aparecem juntas e dançando, é difícil olhar para Zellweger com uma Zeta-Jones possuída pela espírito do jazz logo a seu lado. A cena que mostra bem isso é onde Velma, personagem de Catherine, canta I Can't Do It Alone, onde faz uma apresentação solo e mostra que sim, ela consegue fazer isso sozinha. John C. Reilly se mostra um peso para a parte musical do filme, mas isso faz sentido por ele ser o corno sem-jeito, sua falta de talento e excessivo carisma são críveis. Queen Latifah se mostra com boa presença, mas muito mal aproveitada na parte em que deveria. É difícil classificar Richard Gere em algum lugar. Ele é canastrão demais para apenas uma drama, mas estereotipado demais para um musical descontraído. Em toda a cena que ele aparecia, em meio a sapateado e canto, ele me parecia bastante fora da atmosfera do filme.
Após o sucesso estrondoso de Moulin Rouge no mundo, os musicais voltaram à ativa. Reciclando uma peça de fama inegável da Broadway e a reproduzindo nas telas imensas com um elenco de peso e uma teatralidade e canastrice ainda maior na representação de cenas e personagens, Chicago confirma a premissa de que os musicais voltaram. Não com tanta força para ecoarem com o mesmo sucesso da volta, - os fracassados Nine e Burlesque provam que nem essas duas pérolas do início do século conseguem reviver a aura do vaudeville por muito tempo - mas o bastante para divertir um público faminto por qualquer fonte de entretenimento, vindo ela de músicas animadas, coreografias bem boladas, um elenco de peso e um visual remetendo ao cabaret; ou de assassinatos autopromotores.
NOTA: 8

2 de abril de 2011

Sucker Punch (2011)

Um filme de Zack Snyder com Emily Browning, Abbie Cornish e Scott Glenn.

Podemos procurar na filmografia de Zack Snyder vários indícios de que Sucker Punch seria uma obra perfeita para ele realizar. Seus filmes, como 300 e Watchmen, possuem lutas coreografadas, violência distribuída entre cenas de ação e um contorno filosófico na história. Alguns fatores acabaram favorecendo o resultado que saiu agora nas salas de cinema, mas outros acabam com o filme de forma irreparável. As lutas de Sucker Punch transportam o espectador para um mundo fantasioso, que até agrada visualmente em meio a tanta ação, é quase um sonho nerd. Mas a base que ele tenta estabelecer ao criar devaneios com uma lógica a ser seguida acaba com o filme, já que a narrativa acaba empobrecendo tudo o que ele criou esteticamente para agradar o público.
Após a mãe morrer e o padrasto matar a irmã e tentar matá-la, Baby Doll (Emily Browning) leva toda a culpa pelo marido da mãe, que procura uma forma fácil de ganhar a herança da enteada. Com isso, ela é mandada a um manicômio e colocada numa lista de espera da lobotomia para que o padrasto fique com toda a fortuna. Nos cinco dias restantes até a sua cirurgia, ela cria um ambiente escapista para poder sobreviver na realidade do hospício: todo o ambiente é transformado num bordel, onde ela, Sweet Pea, Rocket, Amber e Blondie (Abbie Cornish, Jena Malone, Jamie Chung e Vanessa Hudgens, respectivamente) procuram a liberdade do lugar liderado por Blue (Oscar Isaac).
Uma forma perfeita de se descrever o novo filme de Snyder é como um videoclipe terrivelmente longo. A primeira cena, que mostra o prólogo da obra através de um plano fechado, cenas em câmera lenta e ações destrinchadas acompanhadas por uma fotografia escura e pela música Sweet Dreams (Are Made Of This), parece um vídeo alternativo feito em homenagem ao sucesso da banda Eurythmics. As sequências apenas confirmam isso, já que a realidade e as fantasias se revezam ao som de Alisson Mosshart, Queen e Björk, e são acompanhadas por elas durante bom tempo da trama, deixando 60% do filme completo entre cenas de ação que poderiam ser melhor aproveitadas em algum RPG, músicas com uma batida forte para acompanhar golpes das mais variadas artes marciais e um cenário, figurino e maquiagem extremamente góticos. Uma dica? Não vá ao cinema, espere sair em DVD. Quem sabe passe até na MTV.
A atuação extremamente descartável da maioria do elenco não constitui muito perigo para o resultado final, já que tudo é movido por efeitos computadorizados em mundos distantes. Mas de qualquer modo, sempre vale a pena ressaltar um ou outro que realmente me fizeram crer que aquele lugar era tanto um hospício quanto um bordel, não apenas cenários variados de Call Of Duty e Shrek. No caso, apenas Abbie Cornish parecia querer mostrar para o que veio, já que sua personagem é a única do longa inteiro que apresenta uma personalidade consistente e não um estereotipo bobo. O resto do longa-metragem se constitui em dois aspectos: o principal, que é a única certeza que temos do filme inteiro - ele vai ser um filme de ação feito para entreter e agradar, não para causar reflexão. Tanto que as três realidades podem agradar a todos que forem ver o filme. O hospício hostil revela o ambiente racional do filme. As outras fantasias revelam uma atitude feita para suportar o peso de uma realidade. Mas, para o filme subir no conceito de muitos, as fantasias se tornam fetiches ou sonhos no auge da loucura. Um bordel para agradar o público masculino e um cenário de caos entre castelos e um campo de guerra para agradar quem foi ver a ação. O segundo aspecto se constitui numa dúvida superficial que ele joga logo no início: todo esse nonsense terá algum significado metafísico ou transcendente envolvendo questões existencialistas?
Fui ver Sucker Punch esperando um filme de ação. O filme jogou em minha mente que ele seria mais do que isso. Mas, no fim das contas, Sucker Punch foi apenas mais um filme de ação. O visual é realmente invejável, tudo no fim é bem bolado para agradar a sessão. Por mais que essas tentativas funcionem no começo, o excesso desse recurso estético acaba cansando, seja no tom escuro das guerras ou o incrível contraste de cores vivas do cabaré. Uma curiosidade, por mais escuro que seja, a fotografia mais sombria é a da realidade do manicômio, não a das cenas violentas. No fim das contas, Sucker Punch é apenas um punhado de cenas de luta com trilha sonora ao fundo, o resto é descartável. Seria um filme melhor se Snyder se lembrasse que, embora apenas uma fantasia seja mais trabalhada, ele tem mais dois mundos para aprofundar.
NOTA: 5