A curiosidade não matou só o gato. Às vezes um caráter estranho de certas situações foram feitos para serem intocados, deixados de lado à seu próprio destino sem qualquer intervenção. Mas a curiosidade, aquela homicida, sempre aparece para dar outro rumo e criar novas circunstâncias. A vontade de descobrir o podre que se esconde por baixo da normalidade, da banalidade, é algo tão latente que muitas vezes não se pode apenas abandoná-la e esperar que tudo se resolva. Essa obra do rei surrealista David Lynch é a prova de que o curioso sempre acaba interferindo no rumo de tudo. É a prova de que algumas coisas são feitas para não se mexerem. E é a prova de que sempre existe algo escondido debaixo da grama verde.
Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan) é um universitário que larga a faculdade após o seu pai, Tom Beaumont (Jack Harvey), ter um derrame. De volta a Lumberton, sua cidade natal, ele acaba encontrando uma orelha humana entre o hospital e sua casa, e acaba levando-a para o detetive John Williams (George Dickerson). Porém, não contentado com um aviso do caso, ele procura saber sobre mais informações e tenta ajudar a investigação sobre a orelha. Para isso, ele tem a ajuda de Sandy Williams (Laura Dern), a filha do detetive, que o leva diretamente para a casa da cantora Dorothy Vallens (Isabella Rossellini), uma suspeita do caso. Mas a espionagem não sai como o esperado e Jeffrey acaba vendo mais do que realmente deveria.
A cena inicial é um presságio do que está no superficial: um jardim florido com rosas e margaridas, um bombeiro estático acenando para a câmera, uma cerca branca com um céu azul de fundo. Por fim vemos o podre. Por trás de toda a beleza cultivada nos jardins da vizinhança, há vários insetos se misturando ao barro. O que há abaixo de tantos artifícios? Se a grama já esconde seus próprios segredos, o que escondem os complexos seres humanos em todos os seus sentimentos e ações e distúrbios? Jeffrey quis saber então, ao achar a chave da porta proibida a ele, o que aquela orelha tinha escutado antes de parar naquele terreno. O único problema é a ingenuidade sobre a verdadeira vida - uma vida falsa encoberta num sorriso. Querer saber é completamente diferente de saber, que é diferente do aguentar saber. O filme de Lynch é feito para cutucar um lado do espectador que ele não deixa sair, que ele esconde atrás de frivolidades, que ele encobre e só revela em seu próprio íntimo. Não há como saber o íntimo de um ator, um ator que finge ser um e é, na verdade, outro. Nessa figura da mentira, ele explora os podres do ser-humano que casa um concorda em ser deixado de lado: os fetiches, o masoquismo, a dor. Aí entra a cantora Dorothy Vallens. O que, na verdade, está nessa vida boêmia, nessa beleza, nessa música?
Veludo Azul é o que se esconde por trás de uma música. A existência de Dorothy se resume em tudo o que ela pode interpretar em seu palco, cantando o melancólico pop de Blue Velvet, canção mais conhecida na voz de Bobby Vinton. Como se coloca tanta coisa em alguns versos? Ela usava o veludo azul, e mais triste que o veludo eram seus olhos, a tristeza exala da persona. Quem melhor do que a cantora para exprimir toda a dor de sua vida em palavras? O envolvimento de Jeffrey com o caso acaba-o levando para o pessoal de terceiros, e a influência do jovem na vida dos outros é algo que se vê bastante nos 120 minutos da sessão. Jeffrey se apaixona pela vida de mentiras vivida por Dorothy, a mulher a quem falta um lar. E se depara com mais bagagem do que queria. Não vem apenas uma cantora instável, vem um fetiche estranho, um passado obscuro, um futuro violento e uma história com vilões. E entra na história o personagem Frank Booth, um sequestrador que não corresponde às expectativas da banalidade, mas que assusta o público nos mínimos detalhes por trás de sua crueldade. E, no fim, há alguém melhor do que ele para desvendar todo o mistério por trás de Veludo Azul? O que realmente aconteceu nesses minutos finais?
O filme é perturbador em suas interpretações variadas. Não se pode acreditar na vida perfeita depois do que acaba de ser vivenciado. Como acreditar em uma fantasia tão grande quanto a crença num final feliz? E, ao mesmo tempo, como resumir a viagem para a mente do diretor? Um sonho, um trauma, um conto? Um mistério. O impacto do filme diminui com o tempo, mas não se nega que ainda é atual. Toda a desconstrução da vida social está contida na superficialidade, exposta sem pudor por Lynch. Nas filmagens que o diretor fez na Carolina do Norte, um público da cidade em questão se reuniu em mesas de piquenique para ver as gravações, à contragosto de Lynch. Após o primeiro grito de "corta!", todo o público tinha sumido, e o que apareceu foi um aviso dizendo que o diretor não poderia mais gravar em áreas públicas. E como se lida com isso, o observar de toda uma crença no que poderia ter sido verdade se tornar uma mentira imensa? É um voyeurismo social, um papel feito pelo curioso Kyle MacLachlan no longa-metragem através de imagens do ponto de vista subjetivo de alguém escondido, espiando, sonhando.
Enquanto o roteiro primoroso do sempre genial David Lynch consegue angustiar e prender o público na tela com vários simbolismos e metáforas, e a direção do mesmo também é uma maravilha para diferentes enquadramentos e ângulos até então não vistos pelo público; a outra metade de Veludo Azul fica por conta das interpretações. A sonhadora Isabella Rossellini rouba as cenas. Sua expressão cansada e sua perturbação aparente encantam qualquer um. Ao mesmo tempo, há o vilão encarnado pelo magnífico Dennis Hooper. Impossível não olhá-lo e ter medo, mesmo ele com um sorriso no rosto tendo um ataque asmático. Laura Dern é uma maravilha nas partes em que aparece. Devo dizer que Kyle MacLachlan foi o que menos me agradou no filme inteiro, mas conseguiu carregá-lo como protagonista. Ao mesmo tempo que as interpretações surreais preenchem a tela, a fotografia de Frederick Elmes a contorna com tons de azul escuro em grande parte das cenas. E, não menos importante, temos a trilha sonora de Angelo Badalamenti, transparecendo toda a tristeza da atmosfera do filme. Como resultado final, Veludo Azul se torna um filme noir surrealista e intrigante.
Em certo momento do filme, o personagem de Dennis Hooper canta, parodiando Roy Orbison, nos sonhos, eu caminho contigo; nos sonhos, eu falo contigo; nos sonhos, você é meu; todos os tempos, para sempre. E há alguma outra explicação? Lynch cria uma sátira do padrão de vida americano e o transforma num pesadelo leve de tristeza que, mais tarde, definiria seu estilo onírico em filmes como Cidade dos Sonhos ou Império dos Sonhos. Apenas nos sonhos existe a tão sonhada perfeição. Agora, enquanto não vamos dormir, temos de aguentar o viver, um viver universal representado nessa obra desse grande diretor, um viver que apenas aguarda a ilusão de passarinhos vindo comer todos os insetos escondidos na grama.
NOTA: 9