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22 de agosto de 2011

Veludo Azul (1986)

Um filme de David Lynch com Kyle MacLachlan, Isabella Rossellini, Dennis Hooper e Laura Dern.

A curiosidade não matou só o gato. Às vezes um caráter estranho de certas situações foram feitos para serem intocados, deixados de lado à seu próprio destino sem qualquer intervenção. Mas a curiosidade, aquela homicida, sempre aparece para dar outro rumo e criar novas circunstâncias. A vontade de descobrir o podre que se esconde por baixo da normalidade, da banalidade, é algo tão latente que muitas vezes não se pode apenas abandoná-la e esperar que tudo se resolva. Essa obra do rei surrealista David Lynch é a prova de que o curioso sempre acaba interferindo no rumo de tudo. É a prova de que algumas coisas são feitas para não se mexerem. E é a prova de que sempre existe algo escondido debaixo da grama verde.

Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan) é um universitário que larga a faculdade após o seu pai, Tom Beaumont (Jack Harvey), ter um derrame. De volta a Lumberton, sua cidade natal, ele acaba encontrando uma orelha humana entre o hospital e sua casa, e acaba levando-a para o detetive John Williams (George Dickerson). Porém, não contentado com um aviso do caso, ele procura saber sobre mais informações e tenta ajudar a investigação sobre a orelha. Para isso, ele tem a ajuda de Sandy Williams (Laura Dern), a filha do detetive, que o leva diretamente para a casa da cantora Dorothy Vallens (Isabella Rossellini), uma suspeita do caso. Mas a espionagem não sai como o esperado e Jeffrey acaba vendo mais do que realmente deveria.

A cena inicial é um presságio do que está no superficial: um jardim florido com rosas e margaridas, um bombeiro estático acenando para a câmera, uma cerca branca com um céu azul de fundo. Por fim vemos o podre. Por trás de toda a beleza cultivada nos jardins da vizinhança, há vários insetos se misturando ao barro. O que há abaixo de tantos artifícios? Se a grama já esconde seus próprios segredos, o que escondem os complexos seres humanos em todos os seus sentimentos e ações e distúrbios? Jeffrey quis saber então, ao achar a chave da porta proibida a ele, o que aquela orelha tinha escutado antes de parar naquele terreno. O único problema é a ingenuidade sobre a verdadeira vida - uma vida falsa encoberta num sorriso. Querer saber é completamente diferente de saber, que é diferente do aguentar saber. O filme de Lynch é feito para cutucar um lado do espectador que ele não deixa sair, que ele esconde atrás de frivolidades, que ele encobre e só revela em seu próprio íntimo. Não há como saber o íntimo de um ator, um ator que finge ser um e é, na verdade, outro. Nessa figura da mentira, ele explora os podres do ser-humano que casa um concorda em ser deixado de lado: os fetiches, o masoquismo, a dor. Aí entra a cantora Dorothy Vallens. O que, na verdade, está nessa vida boêmia, nessa beleza, nessa música?

Veludo Azul é o que se esconde por trás de uma música. A existência de Dorothy se resume em tudo o que ela pode interpretar em seu palco, cantando o melancólico pop de Blue Velvet, canção mais conhecida na voz de Bobby Vinton. Como se coloca tanta coisa em alguns versos? Ela usava o veludo azul, e mais triste que o veludo eram seus olhos, a tristeza exala da persona. Quem melhor do que a cantora para exprimir toda a dor de sua vida em palavras? O envolvimento de Jeffrey com o caso acaba-o levando para o pessoal de terceiros, e a influência do jovem na vida dos outros é algo que se vê bastante nos 120 minutos da sessão. Jeffrey se apaixona pela vida de mentiras vivida por Dorothy, a mulher a quem falta um lar. E se depara com mais bagagem do que queria. Não vem apenas uma cantora instável, vem um fetiche estranho, um passado obscuro, um futuro violento e uma história com vilões. E entra na história o personagem Frank Booth, um sequestrador que não corresponde às expectativas da banalidade, mas que assusta o público nos mínimos detalhes por trás de sua crueldade. E, no fim, há alguém melhor do que ele para desvendar todo o mistério por trás de Veludo Azul? O que realmente aconteceu nesses minutos finais?

O filme é perturbador em suas interpretações variadas. Não se pode acreditar na vida perfeita depois do que acaba de ser vivenciado. Como acreditar em uma fantasia tão grande quanto a crença num final feliz? E, ao mesmo tempo, como resumir a viagem para a mente do diretor? Um sonho, um trauma, um conto? Um mistério. O impacto do filme diminui com o tempo, mas não se nega que ainda é atual. Toda a desconstrução da vida social está contida na superficialidade, exposta sem pudor por Lynch. Nas filmagens que o diretor fez na Carolina do Norte, um público da cidade em questão se reuniu em mesas de piquenique para ver as gravações, à contragosto de Lynch. Após o primeiro grito de "corta!", todo o público tinha sumido, e o que apareceu foi um aviso dizendo que o diretor não poderia mais gravar em áreas públicas. E como se lida com isso, o observar de toda uma crença no que poderia ter sido verdade se tornar uma mentira imensa? É um voyeurismo social, um papel feito pelo curioso Kyle MacLachlan no longa-metragem através de imagens do ponto de vista subjetivo de alguém escondido, espiando, sonhando.

Enquanto o roteiro primoroso do sempre genial David Lynch consegue angustiar e prender o público na tela com vários simbolismos e metáforas, e a direção do mesmo também é uma maravilha para diferentes enquadramentos e ângulos até então não vistos pelo público; a outra metade de Veludo Azul fica por conta das interpretações. A sonhadora Isabella Rossellini rouba as cenas. Sua expressão cansada e sua perturbação aparente encantam qualquer um. Ao mesmo tempo, há o vilão encarnado pelo magnífico Dennis Hooper. Impossível não olhá-lo e ter medo, mesmo ele com um sorriso no rosto tendo um ataque asmático. Laura Dern é uma maravilha nas partes em que aparece. Devo dizer que Kyle MacLachlan foi o que menos me agradou no filme inteiro, mas conseguiu carregá-lo como protagonista. Ao mesmo tempo que as interpretações surreais preenchem a tela, a fotografia de Frederick Elmes a contorna com tons de azul escuro em grande parte das cenas. E, não menos importante, temos a trilha sonora de Angelo Badalamenti, transparecendo toda a tristeza da atmosfera do filme. Como resultado final, Veludo Azul se torna um filme noir surrealista e intrigante.

Em certo momento do filme, o personagem de Dennis Hooper canta, parodiando Roy Orbison, nos sonhos, eu caminho contigo; nos sonhos, eu falo contigo; nos sonhos, você é meu; todos os tempos, para sempre. E há alguma outra explicação? Lynch cria uma sátira do padrão de vida americano e o transforma num pesadelo leve de tristeza que, mais tarde, definiria seu estilo onírico em filmes como Cidade dos Sonhos ou Império dos Sonhos. Apenas nos sonhos existe a tão sonhada perfeição. Agora, enquanto não vamos dormir, temos de aguentar o viver, um viver universal representado nessa obra desse grande diretor, um viver que apenas aguarda a ilusão de passarinhos vindo comer todos os insetos escondidos na grama.

NOTA: 9

19 de agosto de 2011

Poltergeist: O Fenômeno (1982)

Um filme de Tobe Hooper com Craig T. Nelson, JoBeth Williams e Heather O'Rourke.

A dificuldade do gênero em terror, em especial, é que a maior parte de seus filmes são obras feitas para a sua própria época. Por depender bastante de uma maquiagem muito boa, de uma trilha sonora assustadora, de efeitos especiais que fazem o público crer no que está acontecendo na tela e num roteiro exigente, as fitas de horror se perdem em seu próprio tempo. Apenas os considerados clássicos conseguem sair de sua época e chegar às outras, mas não com o mesmo impacto que se tem antes. Como se compara a crueldade de um massacre com o terror altamente psicológico de espíritos e demônios? Poltergeist: O Fenômeno é um desses filmes. Sua única diferença é que ele, além de aterrorizar, foi cultuado como ícone.

Steve Freeling (Craig T. Nelson) é um corretor de imóveis. Ele mora com sua família numa vila, e é um modelo da família americana. A família é composta por sua esposa Diane (JoBeth Williams), e seus filhos Dana, Robbie e Carol Anne (respectivamente Dominique Dunne, Oliver Robins e Heather O'Rourke). Porém, eventos estranhos na casa fazem com que a família fique perturbada. Tudo começa quando Carol Anne acorda numa noite e começa a falar com a televisão, se referindo a eles o tempo inteiro. Aos poucos, coisas estranhas acontecem na casa, como móveis se mexendo e árvores atacando. Até que, numa tempestade, Carol Anne some, e os Freelings tem de lidar com o sobrenatural para ter a filha de volta.

O diferencial principal foi o roteiro sobrenatural, escrito por ninguém mais, ninguém menos do que Steven Spielberg. Spielberg, que foi proibido de dirigir o filme graças a outro sucesso paralelo que estava fazendo nos estúdios da Universal, E.T., tem sua cara estampada em vários momentos da obra. A apresentação inicial da família num evento que já começa estranho e o desfecho silencioso, apenas esperando o momento certo para a trilha sonora surgir, são marcas do diretor e, aqui, roteirista e produtor. A assombração atacando uma família americana comum, - e não os estranhos sequelados de Massacre da Serra Elétrica ou Sexta Feira 13 - a lenda caótica que ronda os mistérios do poltergeist, a criação da vida após a morte e o descontentamento dos espíritos e outros problemas metafísicos são responsáveis por fazer de Poltergeist um filme que vai além da sessão. Não necessariamente assustando crianças após o que elas viram nas telas, mas como uma reflexão no desconhecido e no excessivamente conhecido. Além de tratar dos espíritos em toda a sessão e fazer deles sustos memoráveis, o diretor Tom Hooper também põe o assunto capitalista na tela. A TV sendo o único meio de comunicação entre o sobrenatural e o físico? Uma corretora de imóveis que brinca com a morte? Está tudo aí, nesses 114 minutos de duração.

Outra sacada interessante é a falta de jeito do homem quando lida com o desconhecido. Os personagens apenas se mostram surpresos enquanto o fenômeno não toma proporções drásticas para toda a vida familiar dos Freelings, mas a preocupação logo surge e toma conta do longa-metragem junto ao terror. Enquanto o roteiro fala por si só durante seus sustos ou o caminho que ele toma ou retoma perto do fim, a trilha sonora ajuda a construir uma atmosfera intensa e faz o filme chegar a seu clímax rapidamente. Ao contrapasso, a falta dela também auxilia bons momentos para o clássico do terror. Quem toma conta de todos os efeitos sonoros - e foi indicado ao Oscar naquele ano por esse trabalho - é Jerry Goldsmith, o mesmo que produziu os sons de Jornada nas Estrelas. Sua maestria nos fez o filme acalmar e aterrorizar uma plateia tensa. E quando a trilha sonora sumia, o que fazer com a apreensão que exala de todos os espectadores? Ao mesmo tempo que a trilha foi indicada ao prêmio máximo do cinema, também foram os efeitos especiais, da ILM. Ver um demônio se materializar na porta de um quarto, uma árvore engolir uma criança e um quarto rodopiar não é nada para quem já viu A Origem, mas foi um marco para a época. Tudo está bem realizado e propicia não o medo, mas a surpresa.

Para completar essa linha de Poltergeist, as atuações também surpreendem. O elenco adulto faz um ótimo trabalho e percebe-se a força interpretativa de casa personagem. Uma ressalva especial para JoBeth Williams que fez Diane Freeling, a esposa preocupada e disposta a tudo. Uma cena em especial, em que ela tenta se comunicar com a filha sumida e recebe uma mensagem através de aura da menina, conquista o público. O pai, feito por Craig T. Nelson, é bem vivo em suas ações e isso importa bastante na carga colocado para a vivência. A incredulidade e o ceticismo também são bem explorados. Para um contraponto a essa falta de fé, temos a competência da veterana Beatrice Straight e de uma comicidade de outro mundo, trazido pela ótima Zelda Rubinstein. Por fim, entre as três crianças do elenco mirim, quem se sobressai é a caçula Heather O'Rourke, a inocente menina que consegue contatar os espíritos que rondam sua casa. A sua ingenuidade consegue amolecer os corações mais duros, e seu choro doce e cheio de medo é o bastante para transportar o público para o cenário do filme. Seus olhares e suas bocas foram essenciais para a criação das características da pequena Carol Anne. Foi realmente uma pena a morte da criança aos 12 anos de idade, logo após ter feito o terceiro episódio de Poltergeist.

Poltergeist: O Fenômeno ainda mantém seu posto de clássico seguro, mas dificilmente assustará a nova geração que aprende agora a dar valor às diversas carnificinas para depois ver o thriller obtido no horror da década de 70 e 80. Mas é inegável a influência que essa obra fez para filmes futuros sobre espíritos que assombram casas, mexem móveis e perturbam almas. Veja o filme e perceba quantos mistérios e suspenses dos roteiros atuais tem uma ponta de Poltergeist no meio. Exemplo claro disso é o novo terror, Sobrenatural, que copia as situações do filme de Tobe Hooper até não poder mais. Mas isso não é ruim, é apenas uma mostra do valor do velho terror agindo sobre a crueldade atual exposta em torturas e mortes explícitas.

NOTA: 9

13 de agosto de 2011

A Árvore da Vida (2011)

Um filme de Terrence Malick com Brad Pitt, Jessica Chastain e Hunter McCracken.

Nunca um filme foi tão completo quanto o novo do sombrio diretor Terrence Malick. A Árvore da Vida é uma reflexão precisa sobre não apenas a vida, mas sobre a morte, a educação, a moral e a religião, o crescimento e as etapas, a infância e a revolta, sobre tudo. Não é uma história sendo contada nas 2 horas e 20 minutos de sessão, mas é uma vida inteira. A primeira imagem do filme, após uma citação bíblica de Jó, é um jogo de luzes. A simbologia brinca durante o filme inteiro, marcando o nascimento do homem, a evolução do mundo e os instintos da natureza, tudo ao mesmo tempo. E é assim que se cria esse perfeito ganhador da Palma de Ouro em Cannes. Mas não pense que o acompanhamento à essa obra-prima é algo fácil para todos os espectadores.

Numa metáfora simples para o nascimento, para um bebê num útero, Malick dirige seu filme do jeito mais seguro possível. Aos poucos, A Árvore da Vida mostra seu tom: é um filme feito aos moldes de um trailer. Suas sequências são curtíssimas e ele prega mais por imagens sem linearidade da natureza do que de uma história junta. São momentos passando em diversos flashes por cena, que nunca se mantém num só personagem para dar o foco necessário. Com isso o filme fica cansativo por si próprio e maçante em diversas tomadas, mas também chegamos a descobrir os personagens. Temos um casal formado por Brad Pitt e Jessica Chastain. Enquanto o personagem de Pitt se mostra um arrependido em sua vida dura de trabalho, a personagem de Chastain narra a sessão com reflexões mais profundas. Brad Pitt traz um laço mais familiar para a família retratada, enquanto Jessica faz as duas coisas: o espiritual e o físico. Principalmente quando chega-se à parte da perda, acompanhada da revolta. Em meio à história de perda, o nascimento volta a ser mostrado em outras partes, mas como interpretações distintas. O nascimento de uma nova vida, o nascimento de uma nova etapa, o nascimento de um novo sentimento. O nascer atinge um grau importante para as imagens de Malick, assim como seu contraponto.

A morte é trabalhada de uma maneira mais profunda. Com o aprofundamento do assunto de morte, Malick usa um personagem questionador que pergunta não só sobre os valores da morte, mas também de qualquer dúvidas da vida. E para isso, quem melhor do que uma criança, mostrando o descobrimento da infância? A fase do certo, do errado e da dúvida, de forma que toda a filosofia infantil chegue aos olhos do espectador de maneira sutil. Aí entra Jack (personagem de Hunter McCracken e, no futuro, de Sean Penn), o filho mais velho que aguentou toda a disciplina imposta pela família. O pai, feito por Brad Pitt, é o retrato da moral humana exposta da maneira mais visceral possível: é a junção de normas com a religião de uma forma bem forte. A rigorosidade em casa é ainda posta em contraste com a personalidade de Jessica Chastain, a mãe doce e bondosa que sofre com tanto rigor. O ódio do pai é trabalhado de uma boa maneira aqui junto à morte. Em algumas cenas, não se pode distinguir se o personagem fala sobre o pai encarnado por Brad Pitt ou sobre Deus numa forma revoltosa. Talvez os dois modos, ambos irados com as ações da figura paternal espiritual e genealógica, e exprimindo toda a ira em inquietação. A ira é direcionada a todos. Deus é muito malvado, o pai é muito rigoroso, a mãe é muito condescendente. A infância mostra a pureza e a castidade.

Aí, em Deus, é que mora o perigo da sessão. Em meio a tanto mistério e a tanta confusão causada pela desconexão entre imagens e situações, Malick leva, no fim, o público a uma saída espiritual para a vida após a morte num apelo fortíssimo ao espiritismo. Após tantas questões, ele induz o amor ao divino e ao perdão por meio da bondade irremediável da mãe e do caráter desgostoso do pai. Foi uma saída utilizada por ele para conseguir achar uma continuação ao seu tema principal? Com certeza. Ele consegue trabalhar com a vivência em todas as esferas possíveis: na pré-história, nos dias atuais, no fim do mundo, na morte, na natureza. Mas com tanta religião, ele acaba destruindo a construção rebelde e cética que foi A Árvore da Vida em permanecer imparcial aos mistérios apresentados. O diretor ainda aproveita para retomar uma imagem passada de seus outros filmes e fazer uma referência à memória. Quem não viu, em alguns flashes, na retomada da história, numa casa de campo em meio a girassóis, o conflito principal de Cinzas no Paraíso? E, no meio da moral, do ódio, da morte e da idealização de uma vida, quem não viu detalhes de Terra de Ninguém?

A história acerta num tom que a faz se tratar de todos os assuntos possíveis no tempo mínimo estipulado para tanto. Mas também peca numa narrativa desgastante e numa linha desconexa, desconhecida para grande parte dos espectadores. O que deixa a desejar no roteiro complexo, se completa na estética primorosa. Aos poucos, uma cena feita com o auge sentimental de Jessica Chastain se exprime ao mesmo tempo que a natureza. Será só coincidência num momento de revolta um vulcão explodir, uma cachoeira ensurdecer, o vazio preencher o espaço não só na tela, mas na atmosfera com o silêncio? As imagens complementam as situações. Toda a existência humana cresce junto com o que a natureza faz de si mesma. O crescimento é tão importante quanto a morte e o nascimento, e ele é apresentado em todo o reino animal. Ver dinossauros em tela numa manifestação perfeita de arte e cinema, ver o nado de águas-vivas, ver uma casa submersa, ver uma mulher flutuante, está aí o trunfo e a pureza de todo o filme. Os efeitos especiais ficaram por conta de ninguém mais, ninguém menos que Douglas Trumbull, o mesmo de Blade Runner, Contatos Imediatos do Terceiro Grau, Star Trek e - mais coincidências a parte sobre o tema evolucionista - 2001: Uma Odisséia no Espaço.

A fotografia do filme é especial. Com um modelo simples da claridade excessiva no fundo, projetada pela luz do sol e de sombras se movimentando, ela consegue conquistar. Veja só a sutileza do mergulho de uma cobra, de uma borboleta, de fogos de artifício, de sementes. A morte consegue ficar bela na fotografia de Emmanuel Lubezki. Observe em cada cena como o sol sempre aparece para contrapor a escuridão de algumas partes, sempre centralizado em segundo plano. Essa claridade fica óbvia nas cenas finais com Sean Penn surgindo após a visão de sua história - uma participação que apenas serviu para criar uma aura mais espiritual na obra. Além da fotografia, a trilha sonora é algo essencial para o resultado. Alexander Desplat cria aqui uma orquestra de madeiras, metais, cordas, movimento e silêncio. É inteligente deixar o público, numa sala de cinema, se adaptar à falta de diálogos no filme e, bruscamente mas sem perder a magia da imagem, voltar com uma ópera ou com uma explosão de instrumentos musicais. Para completar, há as atuações que desfecham o filme. Brad Pitt está incrível, entregue a sua própria moral extremista e encarna tudo com precisão. Jessica Chastain, a doce menina que rouba as cenas, cativa o público com seu sorriso que, rapidamente, vira choro. E uma ressalva especial para o jovem Hunter McCracken, que consegue extrair qualquer expressão de um público atento num filme difícil. O nome de Sean Penn apenas está no pôster para popularidade, pois a participação dele no filme é desnecessária.

Não há como negar: A Árvore da Vida é um filme ame ou odeie, e o divisor de águas é até onde se vai para tentar compreender o que o filme traz. Ele pode realmente ser um filme vazio trazendo várias imagens soltas com uma fotografia belíssima - aposta forte do Oscar - ou pode ter um contexto filosófico falando de todas as fases e desafios do ponto de vista da infância. Ele pode ser 138 minutos bem aproveitados para reflexões futuras provindas de um nó na mente, ou pode ser apenas mais uma perda de tempo, como muitas pessoas reclamaram durante e após a sessão que assisti. Pode ser uma alucinação de um diretor maluco ou uma viagem pela espiritualização universal. Ou pode não ser nada. Poderia ser qualquer coisa, do mesmo modo. É um filme de questões, que ficam bem claras durante a sessão. Para onde vamos? De onde viemos? Quem é Deus? Porque ele é tão mau? O que não fica claro é se todo mundo chegou à resposta proposta pela religiosidade do diretor em amar, acreditar e, assim, aproveitar a vida.

NOTA: 8

12 de agosto de 2011

Selos



Aproveito o momento para poder postar dois novos selos do Crítica Mecânica. O primeiro é o Selo Ingmar Bergman, concedido ao blog pelo amigo Nelson L. Rodrigues do Filocinética. Um grande obrigado pela indicação!













O segundo selo - com bastante atraso, rs - é indicação da Natália Xavier, do blog Le Matinée!. Um obrigado especial a Natália. Como regras do Selo Cinéfilos, eu devo indicar dois blogs que eu acho que mereçam o selo, além de citar três filmes favoritos e um quote.
Minhas indicações vão para o Renato, do Cinema, a arte da emoção e para o Adécio, do Poses e Neuroses.
Meus filmes favoritos seriam:

  1. Cisne Negro, de Darren Aronofsky (2010)
  2. Clube da Luta, de David Fincher (1999)
  3. As Horas, de Stephen Daldry (2002)
E o quote seria:
Lying is the most fun a girl can have without taking her clothes off. But it's better if you do. - Por Natalie Portman em Closer.
Finalizando, obrigado novamente pelas indicações dos dois blogs.

9 de agosto de 2011

A Última Noite (2010)

Um filme de Massy Tadjedin com Sam Worthington, Keira Knightley, Eva Mendes e Guillaume Canet.

A construção de uma vida íntima compartilhada deve ser dada por pessoas que partilham a reciprocidade sentimental, ou é inevitável discussões e uma quebra de relações. Nesse jogo de sentimentos, deve-se saber bem o que se passa pois apenas um sentimento a menos já compromete anos de relacionamento. Com a igualdade, até o ciúme sobrevive e se torna saudável em meio a um ninho de amor provindo de ambos os lados. Mas e quando os dois não sentem a mesma coisa? E quando a partilha vem mais de uma parte do que de outra? O comum nesse caso é o adultério, assunto já banalizado há tempos. Quando a sociedade se esquece que a traição é um corrompimento do amor e não causa mais espanto algum atualmente, onde iremos parar?

Conhecemos Joanna (Keira Knightley) e Michael Reed (Sam Worthington) são casados há 4 anos. Os dois se conheceram na faculdade e estão juntos desde então. Numa noite, Joanna começa a sentir ciúmes de Michael  pela relação do marido com Laura (Eva Mendes), uma colega de trabalho, e isso leva a uma discussão. No dia seguinte, Michael viaja com Laura e outro colega para Filadélfia, deixando Joanna desolada em Manhattan. Porém, quando ela sai, ela encontra Alex Mann (Guillaume Canet), um amigo antigo dela que, aos poucos, reacende uma paixão escondida de Joanna.

O principal trabalho do filme se dá na forma da traição. Afinal, ambos os tipos são péssimos para um casal ou um pesa mais do que o outro? Michael não resiste a beleza de Laura, no fim das contas. Realmente, há uma atração pela personagem de Eva Mendes, mas nada mais que isso. Não há emoção, não há amor, não há sentimento, há o prazer carnal. Há a forma que ele encontrou para utilizar o excesso de sua libido, que foi reprimida após as discussões de interesses com sua mulher. Mas o fato é que ele ama Joanna. Michael ama Joanna, mas apenas um pulo da cerca vai fazer um mal? O problema é sua consciência gritando pelo ato errôneo que consumou. O desejo de apenas uma noite começa a lutar com a paixão de toda a sua vida, eclipsada por um instante de loucura e distância. Compreensível? Sam Worthington possui a atuação mais fraca do filme e isso fica claro em sua inexpressão, que deixa difícil decidir o que ele vai fazer na próxima cena. Por um lado é bom, já que o filme fica imprevisível em suas cenas de dúvida. Por outro lado é péssimo, já que ele alonga o distanciamento entre o público e o seu personagem num filme feito para as pessoas sentirem. Eva Mendes rouba as cenas dele com mais expressão e consegue convencer com sua sensualidade ao lado de Worthington, mas qualquer química entre os dois ainda parece forçada, por mais que o relacionamento evolua nos 90 minutos de sessão.

A traição do sexo é o banal de hoje em dia, algo que é considerado normal para quem vê e pecaminoso para quem sofre. Apenas a simples imagem de um marido dividindo a intimidade do leito com uma intrusa é assustadora o suficiente para um divórcio racional. Mas será que o pior é amar alguém e viver uma noite de aventura? Ou será amar o intruso do matrimônio, e viver uma vida de infelicidade? Aí está o papel de Keira Knightley. Joanna ama Michael, e isso ela deixa claro em sua noite. Mas, comparado com o amor que ela nutre por Alex, sua paixão de Michael é pequena. Por mais que um ato sexual não seja mostrado entre os dois por respeito ao casamento de Joanna, o quão melhor é trair emocionalmente? Aqui há uma química latente, porque não há a necessidade da paixão vulgar, de viver uma noite apenas com uma transa. O viver aqui é amar, com ou sem roupas, apenas pela proximidade. A presença é o suficiente para o amor de Alex e Joanna viver e sair das telas. Aqui, diferentemente de Michael e Laura, o silêncio diz mais para o público do que os diálogos. Keira Knightley mostra como é uma grande atriz e cria sua personagem com delicadeza e suavidade, sem se apressar em mostrar toda a sua mente ao público. Ao mesmo tempo, Guillaume Canet cria o cavalheiro da noite, que não precisa da sexualidade para consumar seu amor de longos anos.

A beleza das cenas ajuda na construção do filme, assim como o histórico das personagens. Em A Última Noite, diferentemente de outros filmes que utilizam flashbacks ou memórias para explicar o que ocorre na tela, os personagens nos são dados em apenas uma noite e tudo depende do ator para mostrar o caminho que eles vão seguir, para que o público possa decifrar o psicológico e os desejos de cada um. O que dá certo com a personagem principal de Knightley e com o coadjuvante de Canet, assume um tom de insegurança para Worthington, o que acabou ajudando-o a compor a característica principal de seu personagem. Apenas em Eva Mendes o trabalho misto entre emocional e físico não dá certo, já que a atriz tem de revelar suas mazelas para que o espectador possa entender sua motivação. Enquanto os personagens entram em seus altos e baixos a cada corte e acabam chegando ao clímax em um mesmo ponto, os aspectos técnicos permanecem belos e intocáveis. A simples fotografia azulada e clara de Peter Deming e a trilha sonora indefectível de Clint Mansell aumentam o tom romântico do filme, e até os elementos de cena estão perfeitamente enquadrados aqui para deixá-lo visualmente belo. Mas também deve-se falar do roteiro e da direção da estreiante Massy Tadjedin, que estão primorosos e certeiros.

Simples, bonito e cheio de subjetividade é A Última Noite, um filme que fala do amor na traição, do amor a duas pessoas e do cultivo dele de diferentes formas. A vida de Joanna e Michael é ilustrada em apenas um noite e mostra, de forma clara e rápida, como os dois usam seus sentimentos para com o outro. Por mais que tenha uma certa diferença na profundidade das cenas com os diferentes casais, o final consegue unir todas as pontas. A indecisão é o grande tema aqui, a indecisão amorosa que leva a atos impulsivos e consequências pesadas. E quando observamos Keira Knightley ali, parada, sem saber se corresponde a um sentimento que ela não possui, é que nos damos conta que esse filme não é apenas um filme. Ele não veio para contar uma história grandiosa que ocorreu na vida de alguém. Ele veio mostrar um momento de indecisão, terminou num momento de indecisão e continuará, infinitamente, num momento de indecisão. Afinal, essa é a vida.

NOTA: 7

6 de agosto de 2011

Foi Apenas Um Sonho (2008)

Um filme de Sam Mendes com Leonardo DiCaprio, Kate Winslet e Kathy Bates.

Será que há algo pior do que ver um sonho ser destruído? Um sonho que tinha tantas chances para se realizar, nesse caso a pior coisa é a distância. Quanto mais distante do sonho se está, menos se sofre com sua derrota. Mas quando a realização está apenas a dois passos e, do nada, ela some, o sofrimento é ainda maior. A não concretização da idealização, quando esse ideal se mostra mais do que possível, é uma dor infernal. Em matéria de desejos e vontades, o melhor é a união de dois sonhos iguais, já que ambas as partes procuram ardentemente uma realização. Mas e quando os sonhos são iguais, mas um deles insiste para si mesmo de que ele é impossível? A negação dos instintos e o ato de vontade duelam em cena em Foi Apenas um Sonho.

O longa-metragem narra a história dos Wheelers. April Wheeler (Kate Winslet) é uma atriz fracassada. Frank Wheeler (Leonardo DiCaprio) é um homem frustrado com seu trabalho. Ambos se conhecem numa festa e acabam se casando e tendo filhos. Alguns anos depois, eles vivem a vida americana padrão - mas ambos estão intimamente desgastados com a vida, fingindo o tempo inteiro a maravilha que é a união de ambos. Depois de brigas de casal, Frank e April acabam tendo a ideia de se mudarem para Paris, o que aceitam de primeira mão. Mas algumas complicações começam a arriscar a viagem dos dois, e consequentemente, a relação existente entre ambos.

O filme, aos poucos, começa a trabalhar com metáforas existentes no padrão de vida da América. Uma dona de casa feliz, um marido que volta do trabalho alegre, mas ambos exaustos por dentro. O medo da sociedade de se achar um problema na vida da família é mais alto do que a própria felicidade. Em certo momento Helen Givings, a vizinha interpretada por Kathy Bates, traz uma flor para o casa do casal Wheeler, já que o jardim da família era vazio. Os Wheelers não cultivavam o que queriam, apenas o que queriam que eles quisessem. Tanto April quanto Frank são duas pessoas vazias na mesmice e no comodismo em que se encontram. A diferença é a vontade de potência, é o quanto eles lutam para atingir seu objetivo após a paixão passageira de ambos ter se tornado apenas numa convivência qualquer. O amor dos Wheeler se transformou num bom dia, num sorriso, num choro abafado pelo fingimento de estar tudo bem. Tudo estava bem, mas poderia estar infinitamente melhor. O plano de fuga dos dois pode parecer bastante ingênuo para o espectador e bastante diferente para os padrões da época. Como uma mulher trabalha sustentando um marido ocioso na década de 50? E como o casal tem tanta convicção de que a felicidade deles se encontra em outro lugar? Aos poucos o filme mostra uma faceta diferente: os Wheelers não podem mais buscar felicidade, já que essa se esgotou para eles com a instituição matrimonial. Com duas personalidades tão iguais mas vontades diferentes, a alegria do casal virou uma melancolia.

A principal diferença se dá nos personagens. Frank é infeliz e isso fica claro após sua discussão no filme, logo no começo e dando a entender de que aquela não era a primeira divergência de opiniões do par. Se é assim, como ambos podem permanecer como o casal alto-astral, os jovens e divertidos Wheelers para a vizinhança? Frank é infeliz em seu casamento, é infeliz em seu trabalho, mas é engolido pela sociedade numa batalha de bem-estar. Seu exterior é o homem feliz, mas por dentro ele é internamente amargurado. Frank está tão engolido pela sociedade de 50, altamente patriarcal, que é completamente suscetível a outras formas de manipulação. Sua paixão por April terminou a muito tempo, ou não seria tão fácil a desistência da ideia de ser feliz. Aliás, sua paixão pela felicidade própria também já tinha acabado a muito tempo. Um menino desejoso que nunca quis se tornar igual ao pai, mas acabou exatamente como ele: trabalhador e infeliz. E é realmente difícil encarar a chance dos sonhos diante de tanta mudança. Leonardo DiCaprio é um ator excelente como já mostrou em outros trabalhos, e aqui ele prova o que não precisava mais de provas. Sua atuação está ótima.

Em contrapartida, temos April. Se Leonardo DiCaprio está ótimo em seu papel, aqui Kate Winslet está confortável com sua amargura de um modo bastante crível. Ela encarna sua personagem com uma vivacidade extrema e sempre exprime sua infelicidade em faces ou cenas. Ao passo que Frank não tem tempo para pensar em sua felicidade, April já tem excesso disso. Vivendo sabendo que é o sexo frágil, sabendo que não é uma boa atriz, ela entra na personagem cheia de ódio. Ela pega uma coisa e corre atrás dela, e com sua atitude repressora ela mostra ser mais independente do que Frank enquanto Foi Apenas um Sonho dura. Do mesmo modo, ela lida com o fracasso de uma forma bastante extremista e bipolar, o que fica claro numa das primeiras cenas. April detesta seu casamento, sua família, seus vizinhos, seu subúrbio. E a única maneira que ela acha de reencontrar a felicidade de tudo isso é se mudando, para qualquer lugar bem longe, onde todos possam mudar de vida. Ela pode trabalhar, as crianças podem aprender francês, o marido pode ficar o dia inteiro em casa como ela, descobrindo qual o verdadeiro caminho de sua felicidade. O que ela não contava era com o fracasso de seu plano, e o que o público não contava eram com as consequências causadas na mente de April.

O que reduz a felicidade do casal é o povo, que não aceita ver alguém sendo feliz enquanto eles permanecem impotentes numa situação de vazio existencial. O mascaramento em bebida, em paixões, em felicidade é inútil e faz com que o sofrimento volte pior. A vizinhança não aguenta ver duas pessoas peregrinando pelo mundo buscando o que fazer, isso é vagabundagem. Afinal, é melhor abandonar uma situação estável para viver uma aventura sonhadora? O ponto divergente do preconceito e da inveja social está na atuação excelente e insana de Michael Shannon, que faz John Givings. Bastante sequelado após os tratamentos de loucura da época à base de choques, ele é o único que insiste na vontade dos Wheelers de perseguir o sonho. Assim como é o único que os vê como eles realmente são. Ele, um homem que apenas sonha, mas tem medo da ação, e prefere sacrificar a felicidade a arriscar-se. Ela, uma mulher forte que não mede seus atos num casamento e age individualmente. Para ilustrar isso, há a fotografia suburbana de Roger Deakins, a trilha sonora certeira de Thomas Newman, o roteiro crítico e cru de Justin Haythe, além da grandiosa direção de Sam Mendes.

O que o casal, que já tinha trabalhado junto em Titanic, fez aqui é fazer exatamente o contrário do que fizeram no grande ganhador do Oscar de 1998. Ao invés de acenderem um amor intenso, eles tiveram que apagar a chama fraca de uma paixão passageira. E a química - ou as cinzas dela - em cena dos dois funciona muito bem. Foi Apenas um Sonho é mais do que uma situação em especial, são todas as falsidades vividas num matrimônio. O que Sam Mendes faz aqui é desconstruir, o que já tinha feito com a família perfeita em Beleza Americana. Ele descontrói o casamento, ele mostra o que há dentro das paredes de uma casa e ele mostra como um casamento pode se suportar. O fato que se torna latente nas cenas finais é que o ser-humano ainda não está pronto para um comprometimento tão grande como é o casamento casto, puro e perfeito promovido pela Igreja.

NOTA: 9

3 de agosto de 2011

A Dama na Água (2006)

Um filme de M. Night Shyamalan com Paul Giamatti e Bryce Dallas Howard.

Até que ponto a justiça é realmente justa? Até onde um conto pode ser crível? Como se devem lidar com as críticas negativas? Há algo mais importante do que a fé, e, do mesmo modo, mais alienante? Todos esses pontos são trazidos à tona em A Dama na Água, o difícil do filme foi aprofundar as ideias de uma forma madura o bastante, definindo o público-alvo, determinando o tom da narrativa e criando personagens que possuam veracidade por trás de atos. O filme do criativo Shyamalan é a prova viva de que nem só um diretor é suficiente para um filme ser bom.

Cleveland Heep (Paul Giamatti) é um homem solitário que vive e trabalha como zelador num prédio cheio de moradores estranhos, cada um com sua particularidade. Numa noite, ele encontra uma pessoa que acaba mudando sua vida: uma menina seminua, que mora na piscina do apartamento, chamada Story (Bryce Dallas Howard). Enviada numa missão para que um determinado humano possa começar a ter esperança e tenha a chance de mudar o futuro, Story se encontra num grande perigo, já que sua espécie - as narfs - são perseguidas por um tipo de lobo, cujo objetivo é eliminar as narfs. Cleveland, conhecendo aos poucos a história da jovem, embarca com ela em sua busca do humano e tenta fazer com que ela volte para o seu mundo segura, e ambos acabam tendo uma fantasiosa jornada de surpresas.

Talvez o que tenha tornado A Dama na Água algo tão abaixo do esperado tenha sido a prática separada da teoria. Não há muito do que se reclamar do roteiro, Shyamalan é considerado por muitos uma das mentes mais criativas em atividade atualmente, e todos os assuntos que ele direciona em seu longa-metragem poderiam ser bem explorados em seu conto de fadas. A hierarquia no mundo imaginário que ele cria para dar vida à sua dama na água é um exemplo excelente para figurar o mundo humano. As narfs são o povo que sofre com a decisão dos extremos; os lobos são a violência, usada para um objetivo perseguido com afinco e que acaba quebrando as regras; e os juízes, representados por macacos cruéis. A justiça, até fora dos padrões de normalidade, é justa? A injustiça é apenas um problema vivido pela raça humana? Mas, existe alguma outra raça consciente da justiça? A coisa que a ficção explorada no filme mais exige é a fé. A crença no absurdo, a fé no irreal, a inocência e a ingenuidade de se acreditar. Talvez, por essa subestimação do público reduzida em um ambiente onde o surreal poderia ser visto como algo maior do que uma atitude escapista, o filme não tenha atingido o seu objetivo. Aqui, para tudo funcionar como se deve, tem de haver uma recepção imediata para todas as informações jogadas na tela durante os 110 minutos da sessão. Não é a toa que a protagonista se chama Story - história em inglês. Tem de se crer nas palavras e nos diálogos para uma adesão positiva ao proposto.

Além da fé e da justiça, Shyamalan acaba trazendo a comicidade para o filme ao mesmo tempo que faz uma crítica aos críticos: dois coelhos com uma cajadada mal-dada. Enquanto ele traz um personagem incrivelmente entediante para fazer o papel do crítico de cinema, o lado cômico desse personagem em prever tudo o que acontece no filme é desnecessário. Talvez não para o realizador, mas para muitas cenas. Afinal, o trabalho dos personagens é algo bastante instável no longa. Cleveland é um zelador traumatizado com seu próprio passado, que cria um drama para ele próprio ter sua parcela de sofrimento no longa. O esteriótipo é tão aparente nos personagens que eles quebram qualquer crença que a história possa ter promovido. Não culpo aqui a Paul Giamatti e Bryce Dallas Howard - que, afinal, fazem um trabalho competente, com um destaque para a facilidade dramática de Giamatti e pelas caras de desespero e inexpressão de Dallas Howard - mas às suas motivações em cena. É bastante difícil crer numa história surreal quando os personagens envolvidos não chegam perto da normalidade. Fica bem mais fácil acreditar em mulheres que vivem nas piscinas tentando fazer um humano despertar para o sentido da vida do que em um menino que vê mensagens subliminares em caixas de cereal, e que possui um pai semelhante, tendo presságios em palavras-cruzadas. Até o próprio Shyamalan, que aparece como um coadjuvante-principal na história, tem sua fatia de superficialidade na interpretação.

Como o roteiro é cheio de passagens desnecessárias na narrativa de um conto de fadas e as atuações beiram o clichê do gênero do suspense, o que resta é apenas a estética - trabalhada com um primor único. A narrativa do filme não é uma das melhores. Na primeira cena do filme, uma narradora acaba ilustrando o que virá a acontecer a seguir por meio de uma animação folclórica. Aos poucos, o que foi omitido da história principal, vai sendo contado os detalhes do resto, tudo dependendo das reações de uma chinesa mal-humorada. Mas o resto é colorido com as cores do diretor. A fotografia azulada de Christopher Doyle ajuda a manter a atmosfera de canção de ninar dark que o filme assume. A trilha sonora do parceiro de Shyamalan, James Newton Howard, acompanha o drama de cada personagem e a jornada de Story para um mundo melhor. Não se pode dizer que Shyamalan é desleixado em seus filmes. Observe a apresentação dos personagens, feito de forma sutil, como se eles fossem aparecer apenas por uma vez e sumissem ao longo da trama; veja a mudança de foco para filmagens dentro d'água, mudanças de planos para ilustrar a luta entre Cleveland e os vilões que buscam a morte de Story: tudo está perfeito. A Dama na Água acabou sendo mais uma experiência bastante pessoal, um filme voltado mais para o diretor do que para o público em si.

O filme acabou sendo um conto de fadas infantil demais para os adultos e sombrio demais para o público infantil. A fantasia acaba se tornando um atrativo em algumas histórias, enquanto em outras é um empecilho que apenas atrapalha a evolução de personagens e de ações. Infelizmente, e para combinar com a qualidade dos filmes recentes de M. Night Shyamalan, A Dama na Água sofreu da segunda situação. Numa história de suspense num apartamento que poderia render um filme tão incrível quanto O Sexto Sentido, e num oceano de fantasias e lendas que viraria algo infinitamente melhor que a adaptação do desenho Avatar: O Último Mestre do Ar para os cinemas, a junção de ambos os estilos não funciona aqui do melhor modo possível. O que funcionou no thriller de fantasias de Guillermo del Toro, O Labirinto do Fauno, aqui virou um filme do diretor indiano feito para ele mesmo e para quem acredita em seu discurso.

NOTA: 3