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30 de abril de 2011

Cópia Fiel (2010)

Um filme de Abbas Kiarostami com Juliette Binoche e William Shimell.

Há um bom tempo vem sendo propagado no Brasil o chamado Centro do Teatro do Oprimido, encabeçado por Augusto Boal desde a década de 80. Essa prática, que possui várias vertentes, tem uma em especial chamada de Teatro Invisível, onde os atores saem pela rua e mostram aos transeuntes uma encenação, explicitando um problema social que muitos ignoram, sem deixar o público perceber que aquilo é uma cena e não uma discussão cotidiana resultante de uma forma de opressão. O efeito que o primeiro filme de Abbas Kiarostami que não se passa no Irã, sua terra natal, transmite à plateia é, na teoria, algo semelhante ao Teatro Invisível. Mas os objetivos são distintos. Enquanto o teatro tenta fazer a sociedade refletir sobre um problema em especial, Cópia Fiel é o retrato de uma situação extremamente ordinária, encenada para sair de sua zona de conforto e se transformar numa reviravolta original.
Elle (Juliette Binoche) é dona de uma loja de objetos sacros que se encontra com o escritor James Miller (William Shimell). O escritor, que se encontra na Itália para divulgar seu novo livro de nome Copie Conforme, acaba por prender a atenção de Elle através de suas palavras e interpretações sobre a arte atual. Para tornar o encontro mais agradável, Elle o leva para uma parte mais isolada da cidade de Toscana, onde ambos podem conversar em paz. Enquanto eles conversam sobre assuntos banais por meio de diálogos profundos, ocorre uma reviravolta nesse encontro entre desconhecidos que acaba por revelar algo impressionante no decorrer da trama.
O que é verdade, o que é mentira? Cópia Fiel te transtorna do início ao fim ao ver uma calma conversa, com tons de vozes alterados e com uma continuidade lenta pela não mobilidade entre idiomas, se transformar numa reviravolta tão brusca que o público fica desorientado até entender o que realmente acontece após uma cena tão comum quanto às outras. E tudo isso é tratado com um tom de bastante naturalidade para a câmera intimista de Abbas Kiarostami, por meio de closes no escuro, visões através do espelho e planos diferentes, tudo sem fugir da simplicidade que contorna todo o meio do filme. Os diálogos recebem o mesmo primor das cenas, tudo feito de forma tão natural que o filme pode ser tão maçante quanto encantador. Em certa cena, Elle e James estão conversando num carro, quando James diz que a arte é bastante relativa através de um exemplo que envolve árvores num campo. Através disso, há um convencimento de que tudo é uma arte, mas as pessoas reconhecem ainda mais as cópias aos originais, já que uma árvore, nunca igual a outra, não é reconhecida num campo, mas numa galeria ela certamente seria analisada fielmente.
Dialetos se misturam, as vozes se alteram ainda mais, os atores ganham mais espaço para transmitir sentimentos extremistas. Se metade do filme fica por conta de um roteiro que, de maçante, começa a prender a atenção de um espectador confuso, a outra metade fica por conta dos atores que possuem uma fortíssima defesa de personagem.William Shimell cria, ao seu redor, o expressionismo de um escritor intelectual, que conhece bem as palavras e sabe do que está falando, mas essa mesma expressão acaba adquirindo um tom antipático ao longo do filme. Juliette Binoche é uma atriz fantástica, e aqui ela prova essa afirmação. Sua personagem é tão verdadeira - ou seria simplesmente uma cópia fiel da verdade? - que não há cena em que ela não convença o espectador do que está acontecendo, e isso é importantíssimo na construção da trama. Afinal, tudo o que se passa é uma cópia fiel do início ao meio ou uma cópia do meio ao desfecho? Impossível saber, os atores mascaram a verdade e a cópia com tanta veracidade que pode-se acreditar em ambos, mesmo sem nenhum sentido. E isso fica implícito na forma com que eles lidam com o parceiro de cena: enquanto o homem, frio e racional, prova o tempo inteiro que uma cópia chega a ser bem mais interessante que a original, a mulher tenta contradizer que uma cópia não possui a mesma intensidade da verdade. E Elle, mesmo sem a experiência que fica implícita no caráter de James, se mostra bem mais concisa em sua fala, e é impossível olhar para ele quando ela está em cena.
Cópia Fiel é exatamente uma junção de dois filmes diversos que se passam na cidade de Toscana, onde Juliette Binoche e William Shimell se encontram com a mesma roupa mas em diferentes situações. A junção deles é que o torna um filme único. Sem tratar de um encontro com caráter romântico ou uma discussão pós-casamento de uma maneira inteiramente comum, Kiarostami une os dois e transforma situações reais numa cópia. No que você realmente pode acreditar quando está observando vidas alheias? O que seria um Teatro Invisível aqui? Talvez as duas partes, talvez nenhuma. Mas ele consegue fazer uma coisa em ambas: levar um show de interpretação ao público, que tem uma aula sobre o verdadeiro poder e a força de uma cópia inteiramente fiel.
NOTA: 9

9 comentários:

Adecio Moreira Jr. disse...

A primeira parte desse filme eu acho uma delícia, do meu tipo... parece até que foi feito PARA mim.

Não vou dizer que ficou pior depois do "trato" que eles fazem. Mas ficou... humm.... diferente.

^^

Rodrigo disse...

As pessoas têm falado tão bem, mas não consegui arranjar tempo ainda para ver. E só para não mudar a tradição, ótimo post, porque realmente merece. Abraços.

Rafael W. disse...

Preciso assistir, adoro a Juliette Binoche.

http://cinelupinha.blogspot.com/

Alan Raspante disse...

Preciso ver este filme, tem recebido comentários positivos (se bem que, negativos também...). Enfim, tem Binoche... então já vale dar uma conferida!

Ricardo Morgan disse...

Não vi! Boa dica!
Um abraço

Kamila disse...

Os comentários sobre este filme são tão bons que eu tenho que conferir, sem dúvida alguma. Não somente por causa da elogiadíssima performance da Juliette Binoche.

Ezequiel Fernandes disse...

Quero muito vê esse filme; já li bastante a respeito, só falta assisti-lo. Tudo o que espero dele você falou. Ótimo post e valeu pela visita no cinemafia. Abraços!

Andinhu S. de Souza disse...

Belíssimo filme e um dos grandes de 2010. Binoche tá um amor nesse filme.

Valéria disse...

Há muito, muito tempo não via um filme como este.
Por um lado, me deixou triste e por outro, não tão infeliz, por pensar que este tipo de solidão ou incomunicabilidade com o outro não é exclusividade de minhas (poucas) relações amorosas.
Por outro lado, morei na Itália e aquele diálogo, fundamental, entre Juliette Binoche (meu Deus, mas que atriz é esta? não existe nenhuma cópia conforme dela) e a atendente da trattoria é perfeitamente um diálogo que se pode ter numa ocasião como essa por uma senhora italiana, como pode?
Filme maravilhoso, perfeito, incrível.