Um filme de Todd Haynes com Cate Blanchett, Heath Ledger e Marcus Carl Franklin.
Quem nós somos? Há muito tempo diversas áreas das ciências humanas vêm tentando descobrir o que é o complexo ser humano. Há quem o defina como pecado, há quem o defina como miséria, há quem o defina como razão, há quem o defina como libido. Mas é impossível definir esse ser numa só palavra, já que estamos em constante mudança. Como dizia Heráclito, o "devir" controla nós e tudo a nossa volta para sofrermos uma transformação a cada momento. O eu de hoje não é o mesmo eu de ontem e nem será o mesmo eu de amanhã, algo há de mudar. Sendo assim, uma definição se torna difícil para essa criatura movida por um ciclo de mutações. Não Estou Lá é a prova disso: como se faz para definir algo tão efêmero?
O filme é uma biografia das diversas fases do cantor e compositor Bob Dylan, e consegue se segurar sem sequer citar o nome do homenageado. Temos Woody Guthrie (Marcus Carl Franklin), um garoto negro de 11 anos que anda pelo mundo com sua "máquina de matar fascistas"; Arthur Rimbaud (Ben Whishaw), um homem com respostas subjetivas que está sendo interrogado; Jack Rollins (Christian Bale), um cantor de folk no fim de sua carreira após aparecer, bêbado, para receber um prêmio; Robbie Clark (Heath Ledger), um ator que encena Jack Rollins em seus anos áureos, mas enfrenta no seu dia a dia uma relação conturbada com sua esposa Claire (Charlotte Gainsbourg); Jude Quinn (Cate Blanchett) é um cantor de folk atual cuja banda se rende ao rock, não agradando boa parte dos fãs ao verem que a sonoridade não é a mesma; e temos Billy the Kid (Richard Gere), um homem solitário que vai contra os caminhos da sociedade.
As atuações completam o filme em sua duração. Todas as 6 distintas personalidades de Bob Dylan entram em harmonia ao decorrer das histórias. Richard Gere faz a parte de Bob Dylan escondida do mundo, soterrada atrás de uma máscara para não chamar a atenção das luzes que antes o perseguiam. E ele, com toda a sua calma atribuída ao personagem, tira de letra. Ben Whishaw é a personalidade poética do ídolo folk. O vemos parafraseando, com o visual e a fala expressando rebeldia jovem, falas de Bob Dylan mescladas com o lirismo do verdadeiro poeta Arthur Rimbaud em seus diálogos. Marcus Carl Franklin, o pequeno garoto de 11 anos, tem uma das melhores atuações do longa. Ele, com um típico sotaque sulista, faz um menino encantado e nômade, que vaga pelo mundo apenas levando sua música consigo e sua atitude mais verdadeira do que muitos adultos. É impossível não se encantar com o caráter do menino e a atmosfera que ele traz ao entrar em cena é única.
Heath Ledger faz a vida pessoal de Dylan ao criar um conflito dentro de casa com a mulher e, após isso, voltar para assinar os papéis de divórcio. Além do mais, o Dylan/Ledger faz uma antítese ao Dylan/Gere: enquanto o último foge da atenção do mundo, se escondendo numa casa pequena, o outro aparece e tem uma vida pública, tanto que o assédio de fotógrafos é representado com força aqui. Christian Bale representa a reviravolta religiosa na vida de Bob Dylan, quando ele próprio virou um pastor após ter noção de sua vida conturbada. Através de um estilo documentário, narrado em grande parte por Julianne Moore, a vida de Dylan se transforma na pregação do arrependimento de atitudes ofensivas e da propagação de tamanha rebeldia influenciada pelo caos trazido do ramo musical. E por falar em caos, temos a melhor atuação do filme. Cate Blanchett é a única mulher representando Dylan e talvez esse seja o fator para ser o personagem mais agradável. A ironia presente nessa fase de Dylan é deliciosa e suas críticas e alfinetadas são feitas para um público satisfeito se encher com sorrisinhos na cara. A fase crítica de Dylan, representada no caos envolvendo as drogas, o rock n' roll e o sexo, é forte e é a ideia mais estereotipada que o povo tem de um astro do rock.
Com a mudança dos personagens, a estética das cenas também muda. Enquanto as cenas de Heath Ledger apresentam fotografia escura e ritmo mais lento, caracterizando a melancolia do término de um romance, as cenas de Cate Blanchett acontecem, embora com a tela em preto e branco, com maior rapidez e numa narrativa composta por várias metáforas retratando o espírito rebelde e contestador de suas letras e de sua atitude nos anos que foram se seguindo. As metáforas estão presentes em toda a obra, algumas através da linguagem de Ben Whishaw na composição do seu personagem, outras na transição de um Dylan para o outro, outras ainda feitas num contraste entre a trilha sonora, composta por hits como Like a Rolling Stone e Knocking on Heaven's Door, e as cenas. As cenas, fortes cada uma a sua maneira, compõem o clímax do filme que não parece ter fim, ainda mais quando começamos com um acidente de moto e terminamos com um elo entre passado e futuro.
Por mais que o filme tenha atuações mais do que excelentes, um caráter moral e crítico presente na biografia do ídolo folk que é apresentado ao longo de suas diversas personalidades, um visual belíssimo, que varia de um bar sujo até o enclausuramento do mundo, Não Estou Lá não cumpre o que promete. Faz muito mais do que isso. Ao invés de mostrar um filme de Bob Dylan, ele mostra a essência de um humano em suas diversas fases, de um humano camaleão que serve de exemplo para a sociedade se embasar em suas teorias sociais, em suas frases desbocadas e em seu estilo de vida que é propício a qualquer novo caminho. A mudança constante é que nomeia a película, não estou lá porque aquele não sou eu, aquele era eu. É um filme metafórico que entrega um espírito em sua duração. Ser o espírito de Bob Dylan é uma consequência e um atrativo a mais para tornar Não Estou Lá em um filme imperdível.
NOTA: 9
30 de março de 2011
25 de março de 2011
Carrie, A Estranha (1976)
Um filme de Brian DePalma com Sissy Spacek, John Travolta e Piper Laurie.
Não há adolescente que não queira uma vida normal. Por mais que nessa época os jovens reclamem demais por uma vida boa que eles insistem em estragar, nunca vi algum garoto ou garota atualmente que se veja melhor sozinho, sem amigos, sem convivência com os outros. A convivência e as relações são importantes na vida de um estudante, já que são essas amizades que mais perduram na vida. Além do mais, nesse período de grandes descobertas, o jovem precisa de um ponto de apoio, ou a coisa mais fácil é o adolescente em questão entrar num surto existencialista causado por dúvidas e falta de afeto. Se não conseguir estabelecer essas relações de confiança já chega a ser difícil, imagine quando essa dificuldade é alvo de uma humilhação constante que parece ser infinita? Ainda mais, imagine quando não há um apoio nem dentro da própria família? Bem vindos à terrível vida de Carrie.
Carrie White (Sissy Spacek) é uma menina que não chega a ser diferente das outras, mas é levada a acreditar nisso graças ao bullying que sofre dentro da escola. Ela é tímida, introspectiva, frágil e desorientada, já que seu exemplo mais forte é a mãe, Margaret White (Piper Laurie), uma fanática religiosa que chega a ser violenta para que a filha cumpra suas preces e ore com fervor. Para completar a confusão que é sua vida, recheada de humilhação no ambiente escolar e familiar, Carrie tem poderes telecinéticos, e ninguém suspeita deles - ou de o quanto eles ficam fortes quando movidos pelo ódio.
Algumas pessoas tomam Carrie como a principal vilã do filme, uma garota perturbada e balançada por viver no seu mundo e não conseguir chegar perto do próximo. Carrie chega bem longe disso. O principal vilão de Carrie, A Estranha é o preconceito. O preconceito gerador de bullying, o preconceito gerador da ignorância, o preconceito gerador do medo. A câmera de Brian DePalma e a atuação excelente de Spacek nos mostra isso a cada segundo desse clássico do terror: sentimos pena de Carrie, por mais que ela se mostre vingativa e destrutiva, sentimos compaixão, sentimos alegria, sentimos ódio por quem a humilhou. Até admitimos o trágico final e gostamos do que vemos nas últimas cenas. Carrie é a vítima de tudo porque sua personagem exala inocência. A cena que antecede o fim, onde Carrie finalmente se encontra feliz pela primeira vez em sua vida, onde ela vê amigos e não conhecidos, onde ela vê esperança e não dúvida, é tocante ao extremo em todos os aspectos.
A alienação religiosa é feita de um modo bastante metafórico e de uma força de interpretação incrível de uma ótima Piper Laurie. Até que ponto Jesus salva? Afinal, essa luz divina abre nossos olhos ou nos cega completamente? O extremismo religioso faz com que uma mãe se culpe o tempo inteiro por ter uma filha, resultado de um ato pecaminoso, e coloque o peso de uma heresia nessa filha, de forma que ela seja quase crucificada pelo simples fato de existir. Através da repressão e de uma ditadura familiar, ela toma as rédeas da casa e faz o que quer, trancafiando a própria filha num quarto minúsculo para que ela se redima em relação à deus. E o filme ainda mostra mais: num reino escolar, por mais que existam câmeras em cada corredor, os adolescentes vão ser e permanecer cruéis até onde for possível. Não há escrúpulos para esses jovens que se acham imortais e no direito de agir com ignorância para qualquer um. Adultos crescem ranzinzas com vidas medíocres graças ao que receberam na época de estudantes. A telecinese, no fim, não é um dom divino ou satânico concedido para a menina. É fruto de uma vida frustrada por todos os lados.
A direção segura de Brian DePalma transforma Carrie, A Estranha nesse clássico que é atualmente. Transitando entre diversos planos e ângulos de uma câmera intimista, mostrando aos poucos o universo onde a protagonista se esconde, através de uma divisão da tela para que o caos de Carrie reine em mais de uma visão, DePalma cria um show de horrores na tela. Parte desse show vem de poderes fortes nas mãos de uma garota estranha e instável, que após sofrer a humilhação do mundo decide dar o troco. O resto do espetáculo fica com a censura de uma adolescente absolutamente normal. Betty Buckley, que faz uma professora preocupada com a atitude das outras pessoas para com Carrie, mostra o quanto esse espetáculo chega a ser horrível, já que ela bate numa tecla que volta com mais força. O limite do ser humano é a morte, já que em vida ele não consegue achar seus próprios limites para a precaução.
Preconceito, medo, bullying, humilhação. Essas palavras podem estar presentes no dia-a-dia de cada pessoa, pessoas que guardam inconscientemente um trauma correspondente dessas ações infames. Uma brincadeira pode gerar uma chacina no fim das contas. Essa temática forte misturada com atuações estupendas de Sissy Spacek e Piper Laurie, junto com uma estética e direção impecáveis e um roteiro excelente, escrito originalmente por Stephen King, gerou Carrie, A Estranha. O filme é simples: bailes de formatura, vida escolar, problemas em casa. Mas só mesmo uma combinação dessas com o suspense para transformar um filme de Sessão da Tarde num terror atemporal.
NOTA: 8
Não há adolescente que não queira uma vida normal. Por mais que nessa época os jovens reclamem demais por uma vida boa que eles insistem em estragar, nunca vi algum garoto ou garota atualmente que se veja melhor sozinho, sem amigos, sem convivência com os outros. A convivência e as relações são importantes na vida de um estudante, já que são essas amizades que mais perduram na vida. Além do mais, nesse período de grandes descobertas, o jovem precisa de um ponto de apoio, ou a coisa mais fácil é o adolescente em questão entrar num surto existencialista causado por dúvidas e falta de afeto. Se não conseguir estabelecer essas relações de confiança já chega a ser difícil, imagine quando essa dificuldade é alvo de uma humilhação constante que parece ser infinita? Ainda mais, imagine quando não há um apoio nem dentro da própria família? Bem vindos à terrível vida de Carrie.
Carrie White (Sissy Spacek) é uma menina que não chega a ser diferente das outras, mas é levada a acreditar nisso graças ao bullying que sofre dentro da escola. Ela é tímida, introspectiva, frágil e desorientada, já que seu exemplo mais forte é a mãe, Margaret White (Piper Laurie), uma fanática religiosa que chega a ser violenta para que a filha cumpra suas preces e ore com fervor. Para completar a confusão que é sua vida, recheada de humilhação no ambiente escolar e familiar, Carrie tem poderes telecinéticos, e ninguém suspeita deles - ou de o quanto eles ficam fortes quando movidos pelo ódio.
Algumas pessoas tomam Carrie como a principal vilã do filme, uma garota perturbada e balançada por viver no seu mundo e não conseguir chegar perto do próximo. Carrie chega bem longe disso. O principal vilão de Carrie, A Estranha é o preconceito. O preconceito gerador de bullying, o preconceito gerador da ignorância, o preconceito gerador do medo. A câmera de Brian DePalma e a atuação excelente de Spacek nos mostra isso a cada segundo desse clássico do terror: sentimos pena de Carrie, por mais que ela se mostre vingativa e destrutiva, sentimos compaixão, sentimos alegria, sentimos ódio por quem a humilhou. Até admitimos o trágico final e gostamos do que vemos nas últimas cenas. Carrie é a vítima de tudo porque sua personagem exala inocência. A cena que antecede o fim, onde Carrie finalmente se encontra feliz pela primeira vez em sua vida, onde ela vê amigos e não conhecidos, onde ela vê esperança e não dúvida, é tocante ao extremo em todos os aspectos.
A alienação religiosa é feita de um modo bastante metafórico e de uma força de interpretação incrível de uma ótima Piper Laurie. Até que ponto Jesus salva? Afinal, essa luz divina abre nossos olhos ou nos cega completamente? O extremismo religioso faz com que uma mãe se culpe o tempo inteiro por ter uma filha, resultado de um ato pecaminoso, e coloque o peso de uma heresia nessa filha, de forma que ela seja quase crucificada pelo simples fato de existir. Através da repressão e de uma ditadura familiar, ela toma as rédeas da casa e faz o que quer, trancafiando a própria filha num quarto minúsculo para que ela se redima em relação à deus. E o filme ainda mostra mais: num reino escolar, por mais que existam câmeras em cada corredor, os adolescentes vão ser e permanecer cruéis até onde for possível. Não há escrúpulos para esses jovens que se acham imortais e no direito de agir com ignorância para qualquer um. Adultos crescem ranzinzas com vidas medíocres graças ao que receberam na época de estudantes. A telecinese, no fim, não é um dom divino ou satânico concedido para a menina. É fruto de uma vida frustrada por todos os lados.
A direção segura de Brian DePalma transforma Carrie, A Estranha nesse clássico que é atualmente. Transitando entre diversos planos e ângulos de uma câmera intimista, mostrando aos poucos o universo onde a protagonista se esconde, através de uma divisão da tela para que o caos de Carrie reine em mais de uma visão, DePalma cria um show de horrores na tela. Parte desse show vem de poderes fortes nas mãos de uma garota estranha e instável, que após sofrer a humilhação do mundo decide dar o troco. O resto do espetáculo fica com a censura de uma adolescente absolutamente normal. Betty Buckley, que faz uma professora preocupada com a atitude das outras pessoas para com Carrie, mostra o quanto esse espetáculo chega a ser horrível, já que ela bate numa tecla que volta com mais força. O limite do ser humano é a morte, já que em vida ele não consegue achar seus próprios limites para a precaução.
Preconceito, medo, bullying, humilhação. Essas palavras podem estar presentes no dia-a-dia de cada pessoa, pessoas que guardam inconscientemente um trauma correspondente dessas ações infames. Uma brincadeira pode gerar uma chacina no fim das contas. Essa temática forte misturada com atuações estupendas de Sissy Spacek e Piper Laurie, junto com uma estética e direção impecáveis e um roteiro excelente, escrito originalmente por Stephen King, gerou Carrie, A Estranha. O filme é simples: bailes de formatura, vida escolar, problemas em casa. Mas só mesmo uma combinação dessas com o suspense para transformar um filme de Sessão da Tarde num terror atemporal.
NOTA: 8
21 de março de 2011
Irreversível (2002)
NOTA: 10
Depois de destruir o que há pela frente, o tempo fica irreversível. Antes de ele chegar, você pode muito bem escolher ações pensando ou não pensando em consequências, cada uma mais imprevisível que a outra. Mas depois não coloque o problema no tempo. O filme reverte situações irreversíveis como o abuso sexual e a violência gratuita resultante de sentimentos à flor da pele. O grande vilão do filme é o próprio ser humano, culpado por suas escolhas, culpado por suas ações. A ordem dos fatores não altera o produto, certo? Irreversível não teria o mesmo peso se sua linearidade fosse normal. De trás pra frente, há a visão das consequências para depois vermos as escolhas darem errado, e não há absolutamente nada que possamos fazer. Noé substituí a surpresa pela crueldade, e dá certo. E assim o filme termina, em meio a cenas cruéis e necessárias que acontecem a todo canto com uma frequência banalizada. Termina exatamente como se começa. O tempo destrói tudo.
O tempo acaba por destruir tudo, como já nos avisaram no início da sessão. O clímax do filme só confirma essa afirmação. O sentimento de repugnância pela nossa semelhança está lá. Quem está atrás do submundo francês, quem está por trás de estupros e assassinatos, quem está atrás da prostituição, quem está atrás da violência é o próprio ser humano. Uma pessoa semelhante ao espectador que comete uma violação retratada em 11 longos minutos na cena chave de Irreversível. Isso fica bastante claro, já que sabemos o tempo inteiro que o estuprador tem uma cara, um rosto, um nome e que faz isso pelo puro prazer pessoal. Com reviravoltas, o público acaba por ter pena do monstro que acaba por virar pessoa. Irreversível tinha chances para ser um filme extremamente simples sobre vingança. Um roteiro fácil sobre o ódio do estupro pode resultar nisso. Mas com a construção dos personagens de forma forte e a direção intimidante de Gaspar Noé ao criar sensações de vertigem e cenas doentias, o filme se torna algo a mais para ser visto, por mais que grande parte não consiga entender o peso real de um assassinato e de um estupro de modo explícito aqui.
O filme é intimidante e desconfortável. Submetido à tamanho desconforto, qual a primeira emoção que o público sente no fim da sessão? Através da linearidade alterada, de atuações ferozes, de uma câmera manual que se sacode e atravessa pontos para dar mais realidade, e de uma explosão de luzes e imagens envolvendo sexo explícito, consumo de drogas, sodomia, masturbação e violência, Noé faz de tudo para o espectador de Irreversível se sentir desconfortável o suficiente para abandonar o filme nos primeiros minutos. O brilho emitido sem cortes, os planos utilizados por inversão, os créditos iniciais acompanhados de sons como tiros, o desconforto fica aparente na filmagem do diretor. Há, para aumentar essa sensação nauseante nos mais fortes, duas cenas que conseguem chocar o público inteiro, ambas mostradas através de longa-sequências e de um ângulo usado de modo a permitir a entrada das pessoas no ambiente degradante do filme. Luzes estroboscópicas e gemidos agudos, misturados com uma escuridão confusa iluminada por uma luz vermelha bruxuleante, já dão náuseas suficientes para quem vê a película. Seria desagradável se tudo isso fosse em vão, ainda bem que Noé sabe administrar suas cenas com crueza e ódio dignos.
Não se espera aqui um relato amarrado sobre o estupro, não se espera aqui um filme cruel sobre a violência, se espera aqui a realidade do ser humano. Se ele é cruel ou deixa de ser, se o estupro é hediondo ou necessário, isso se torna extremamente relativo na mente em que essas ideias são armazenadas. Gaspar Noé cria aqui um ambiente ambíguo. Você é capaz de qualquer coisa se submetido a certas situações, e o diretor prova isso na personalidade tanto de Cassel quanto de Dupontel. Marcus, personagem de Vincent Cassel, começa o filme irracionalmente violento, beirando suas emoções que estavam presas em sua garganta. Mas ao longo do filme ele se mostra um romântico bobo como qualquer outro. Qualquer romântico pode se tornar, numa questão de horas, em uma máquina mortífera? O tempo que diz, veja o que aconteceu nessas horas pra depois ter suas perguntas respondidas. Pierre, personagem de Dupontel, começa o longa metragem numa cena que beira tanto a crueldade que ele pode ser interpretado, erroneamente, como um psicopata. Mas, chegando ao fim, o personagem dele é tão tímido e tão manso que não dá para se acreditar que é a mesma pessoa retratada em ambos os momentos.
De trás para frente, o filme mostra ódio e vingança que podem parecer sem sentido para os espectadores, mas vai se revelando cada vez mais realista à medida que o filme avança para seu desfecho e a trama para seu início. Marcus (Vincent Cassel) é um homem boêmio, apaixonado por sua namorada Alex (Monica Belucci), que vai até o fim do mundo por ela, e prova isso. Junto com Pierre (Albert Dupontel), ele sai, por ruas parisienses, atrás do homem que espancou e estuprou Alex em busca da justiça feita pelas próprias mãos.
O tempo destrói tudo. Assim começamos Irreversível, a obra de linearidade alterada que deu mais notoriedade para o diretor argentino Gaspar Noé, já responsável por vários curtas e pelo premiado longa Sozinho Contra Todos, todos trabalhando com as mais diversas emoções para um público sedento por um sentimento, seja ele qual for. Noé trabalha aqui usando o tempo como o principal fator da discórdia e do conflito, pois sentimos no filme primeiramente a ação para depois sabermos do motivo. E é assim, de trás para frente, que o filme segue, dando lugar ao amor, à repulsa, ao ódio e à vingança. Mas fique preparado, Irreversível te bombardeia com emoções extremistas e você tem que aceitá-las do melhor modo possível para então compreender o que vem depois - e então, sentir o mesmo que os personagens da tela sentem.
Um filme de Gaspar Noé com Vincent Cassel, Monica Bellucci e Albert Dupontel.
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