Pages

12 de dezembro de 2013

Azul é a Cor Mais Quente (2013)

Um filme de Abdellatif Kechiche com Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux.

Jean-Paul Sartre, em sua filosofia existencialista, já falava que a existência precede a essência. Em sua corrente desprovida de Deus (entende-se por aqui qualquer outra divindade ou ser superior) não podemos dizer que alguém nasce com a pré-destinação de ser correto ou justo. O mundo é o que fazemos dele, carregamos a humanidade em nossas costas, reações e consequências. O filósofo cita isso em sua conferência O existencialismo é um humanismo, que não é por menos citada em Azul é a Cor Mais Quente, novo filme de Abdellatif Kechiche. A essência - ou existência - do filme é completamente permeada pela filosofia Sartriana.

Minha única experiência com Kechiche anteriormente foi Vênus Negra (2010), com uma construção de personagem semelhante a de Azul é a Cor Mais Quente: em ambos as personagens são apresentadas por suas ações, mas em momento algum elas têm a voz para falar o que as define (se é que algo as pode definir). Faz parte da complexidade de um ser-humano, ser mais do que aquilo na tela mostra. Isso fica claro em toda a sessão de Vênus Negra, como um incômodo ao pé do ouvido que só nos mostra o lado do colonizador e a condescendência do colonizado. Nesse novo filme, ganhador da Palma de Ouro em Cannes, a vida de Adèle fica clara à partir do segundo ato.

As três horas de sessão apresentam para nós uma adolescente, ainda em fase de estudos literários, aspirante à professora. Essa adolescente é Adèle (Adèle Exarchopoulos), uma menina que ainda está aberta para novas descobertas em sua vida. Nessa fase de experiências é que ela conhece Emma (Léa Seydoux), uma moça sedutora, com um cabelo azul e vivo, abertamente homossexual.

Para bom entendedor, meia palavra basta. Não é difícil saber com propriedade o que vem a seguir se combinarmos essas duas personalidades de características tão complementares. Mas, como dito antes, ninguém é só o que mostra nas telas.

A história de amor consequente do encontro de Adèle e Emma é impulsivo e explosivo. Em muitos aspectos as duas se completam, em outros temos a sensação constante de que não foram feitas para dar certo. O que, felizmente, dá certo no longa-metragem é a criação desse laço de forma simples e tranquila, sem precisar apressar a paixão, o amor e o tesão para encurtar a sessão. Tendo noção disso, Kechiche explora ao máximo as três horas para criar o melhor clima de paixão entre as duas moças. O resultado? Ninguém consegue perceber o tempo passando na sala de cinema. A primeira troca de olhares das duas é apenas depois de 15 minutos do começo da sessão. A primeira interação real só acontece depois de mais 40 minutos, que servem para fixar um lado da personalidade de Adèle, o lado mais latente naquele momento.

O início do filme consiste em fixar uma Adèle contida, que ainda sofre a influência das amigas em suas escolhas, longe de se abrir para surpresas. A coloração predominante é alaranjada, clara, quase como se a fita estivesse pegando fogo - as noites são quentes, os jantares com a família são muito próximos, as amigas andam todas juntas. O relacionamento primário de Adèle com Thomas (Jérémie Laheurte, namorado da atriz) explode com essas cores. As ruas estão com o tom laranja da pele dos dois, o sexo é envolto com proximidade, o calor humano que a relação de ambos exala é sufocante, até mesmo para a personagem. Adèle não se dá bem com essa proximidade, com essa angústia, com esse ardor intenso.

A quebra dessa proximidade excessiva se dá na próxima cena, quando a protagonista finalmente conhece Emma. Num bar alaranjado (tão alaranjado que quase engole o azul do cabelo de Léa Seydoux) é que as duas finalmente conseguem se falar. À partir daí é um passo para todo o filme mudar de contexto e, assim, trazer junto as personagens. 

Adèle não está mais tão contida. Não há mais um ódio na situação sufocante, há um toque de veracidade em cada palavra, cada declaração que poderia ser definida como um misto de ignorância com limite, mas que transborda sinceridade. A literata que não suporta Sartre, que não conhece os artistas, que não vê a necessidade de concordar com tudo o que é falado. Todos os lugares que Adèle se encontra com Emma são diferentes dos lugares em que Adèle se encontrava com Thomas: são lugares abertos, com predominância de branco, verde, azul claro, de liberdade, de expansão horizontal. As duas tem uma fuga próxima, a protagonista finalmente se encontra confortável em sua situação de um modo que nunca se sentiu no relacionamento heterossexual. Isso a atriz faz questão de mostrar em diferenças de situações, um beijo lésbico mal-interpretado gerou muito mais frustração e dor para Adèle do que o término de um relacionamento com o namorado. 

Quanto a comparação das cenas de sexo, a transa com Emma é muito mais livre também; a cama é pintada com tons de azul e branco, a cena é ampla e não se restringe a duas pessoas ocupando um só espaço, espremidas na tela. Aqui há o prazer da distância, de um plano geral que consiga mostrar os dois corpos femininos no auge do prazer e ainda assim exibir detalhes do espaço. O sexo com Emma é longo, demorado, sem pressa, prazeroso. O prazer é compartilhado, não pesa apenas pra um lado. Admiro muito o trabalho de Léa Seydoux e Adèle Exarchopoulos, especialmente nesta parte pelas cenas explícitas e por uma entrega na atuação.

No segundo ato de Azul é a Cor Mais Quente é que a filosofia de Sartre se faz mais presente. Adèle, antes restringida por rótulos sociais (É lésbica? É hétero? É artista? É trabalhadora?) finalmente acha o conceito Sartriano de liberdade. O que era restrição agora é angústia. A personagem enfrenta dúvidas e sem nenhuma parcialidade na direção, apenas a mostração dessa dúvida de um jeito bem explícito. Adèle, que só se vestia com a cor azul, agora tem detalhes vermelhos em sua roupa. O azul continua sim, presente em qualquer roupa que a atriz vista neste segundo ato, em qualquer detalhe, seja na roupa de cama, seja no oceano em que ela mergulha. O encontro de Adèle e Emma (o perto do desfecho, que eu prefiro não entrar em maiores detalhes) tem uma diferença gritante do encontro no bar lésbico. O ambiente é tingido de azul o tempo todo, dando um detalhe não só intimista como sofredor.

Como Adèle mesmo fala, ela come de tudo, menos de ostras (até aquele momento). Poderia passar mais alguns parágrafos discorrendo sobre as relações familiares ambíguas, décadas de teoria queer, a polêmica cena sexual, a fotografia, a trilha sonora e até mesmo o cabelo de Adèle. Acho que tudo isso é detalhe em um filme que só quer brindar o amor livre. Pela liberdade amorosa, pelo prazer de poder comer de tudo, desde um macarrão à bolonhesa até belas ostras, abertas, espaçosas, brancas. Por uma Adèle que não é nem azul, nem vermelha, mas roxa.

NOTA: 9

Um comentário:

Henrique disse...

eu já ia ver esse filme hoje, mas agora que vc fez uma crítica tão boa, só me deu mais vontade