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14 de janeiro de 2012

Precisamos Falar Sobre o Kevin (2011)

Um filme de Lynne Ramsay com Tilda Swinton, John C. Reilly e Ezra Miller.

Baseados nos preceitos cristãos, o início da vida terrestre é marcado pela teoria do criacionismo, onde Deus teria criado o primeiro homem e a primeira mulher para viverem juntos no paraíso, com uma única proibição: não comer o fruto do conhecimento. A partir do momento que a mulher rouba um fruto, iludida pelo diabo, cai sobre ela o peso de ter cometido o primeiro pecado e ter condenado a humanidade, razão pela qual as mulheres foram rebaixadas na sociedade teocrata. Eva, a primeira mulher, seria mesmo o receptáculo da maldade? Merece essa pobre alma tamanho descontentamento com suas ações? Errar é humano. Passando para o presente, temos outra Eva: Eva Katchadourian (Tilda Swinton) mora numa casa sozinha, com vizinhos que a odeiam e jogam coisas em seu carro e nas suas paredes e está cercada por pessoas que lhe evitam. Mas ela era uma mulher feliz, dona de uma agência de viagens e apaixonada por seu companheiro, Franklin (John C. Reilly). Quando Eva tem seu primeiro filho, Kevin (Jasper Newell/Ezra Miller), a experiência não é nada como ela esperava. Enquanto o filho permanece um anjo na presença do pai super protetor, quando ele está sozinho com a mãe, Kevin mostra quem ele realmente é e o que realmente pensa. Durante os 110 minutos da sessão assistimos a transição do passado e do presente de Eva e o que ocorreu para que ela acabasse nessa situação.

Para primeiramente aceitar todo o discurso de Precisamos Falar Sobre o Kevin é preciso sentir as duas partes do problema. De um lado há os vizinhos cheios de raiva e ódio por um ato que modificou a vida de famílias. A culpa nesse caso é da mãe, aquela que ensinou tudo ao filho, certo? Esse é o lado que sempre se verifica para dar peso às notícias, mas nessa obra de Lynne Ramsay vê-se o outro lado. É contada toda a história da mãe, e isso de uma forma completamente distante do maniqueísmo usual. Não há bom e não há mal na história de Eva, aliás, como ela pode condenar de uma forma tão pesada seu próprio filho? Desde o nascimento de Kevin, percebe-se um ódio mútuo entre o filho e a mãe, mas o mesmo tipo de ódio que o mundo sente por Eva após os atos de Kevin? Eva odeia o filho, mas ainda assim é seu filho. Ela deu a luz a ele, ela faria qualquer coisa para ele, ela ainda vê esperança no menino rude, no garoto malvado, em seu filho desregrado. Kevin, ao mesmo passo, detesta a mãe, mas não há amor nesse ódio? Em closes bem colocados e flashbacks, o filme vai conduzindo a plateia da melhor forma até o desfecho, com a ótima direção da escocesa Lynne Ramsay.

Com saltos no tempo constantes, o filme baseado no best-seller de Lionel Shriver capta o protagonismo da mãe e o antagonismo do filho toda hora. Kevin critica a mãe e essa é sua verdadeira essência. Numa cena, o jovem delinquente interpretado por Jasper Newell se mostra irado com a mãe. Ao ouvir o menor sinal do pai, sua faceta muda para um jovem brincalhão e angelical, o tom de voz se torna mais vivo, seus gestos menos controlados. O jovem Kevin fez um trabalho maravilhoso na construção do personagem. Por mais caricato que esteja sua distinção entre o jovem comportado e o jovem zangado, dá pra se notar o teatro que ele faz com a vida real. O que faz Kevin mostrar seu verdadeiro eu para a mãe e fingir-se para o pai? O Kevin adolescente é diferente. Enquanto a criança se distingue entre os pais, o adolescente não mostra mais distinção. Sua indiferença com o mundo é geral, mas as lembranças ainda o tornam a mesma pessoa para cada um: para o pai, a criança interessante que virou o adolescente rebelde e divertido. Para a mãe, um pequeno exemplo de psicopata que virou um grande exemplo de psicopata. E Ezra Miller está ótimo fazendo sua linha do jovem pragmático, paciente e extremamente maléfico.

Ao longo da fita, temos a atuação contrastante com a de Kevin. Não, não é John C. Reilly, que faz um personagem tipicamente norte-americano, mas a desconfiada Tilda Swinton, numa performance de deixar cair o queixo de qualquer desavisado. Ao mesmo tempo que o crescimento de Kevin é explorado no passado, lida-se com o presente vivido por essa mulher sofredora, que tenta reconstruir sua vida social. O único problema seria o social, que não permite o monstro voltar a ter sua vida anterior. É com a mesma indiferença de Kevin junto a uma tristeza profunda que ela constrói a mulher fragmentada, a mãe que perdeu tudo o que tinha, uma "intocável" na sociedade ocidental. Para continuar marcando o filme, há a presença da trilha sonora de Jonny Greenwood e a fotografia bastante avermelhada e escura de Seamus McGarvey.

Até qual ponto a educação paterna influencia nas atitudes filiais? Chega de falar apenas do Kevin, também é preciso fala de Eva. Durante toda a sessão somos apresentados à uma metáfora incessante da família feliz norte-americana, um casal que se dá bem com dois filhos perfeitos. E desde quando existe tamanha perfeição assim? Tirando as máscaras, Eva é uma receptora para aquilo que os outros não veem. Ela realmente percebe o que há implícito naquele que ela deveria amar e, mesmo com atitudes de rejeição e nojo com o seu filho, a realidade da mãe ainda é certa: ela crê no Kevin até o fim. Tilda Swinton está soberba em sua performance de Eva Katchadourian. E essa pecadora - que admite esse seu defeito -, devido aos delitos que cometeu ou não, se tornou uma santa com o dom da redenção. Uma santa que teve uma viagem direta ao inferno que seu primogênito fez questão de lhe preparar.

NOTA: 10

8 comentários:

Luiz Santiago (Plano Crítico) disse...

Eu já havia lido a opinião de um amigo a respeito, e agora vi reafirmada todas as boas características desse filmes. Preciso conferi-lo! Gostei muito da análise amigo!

Um abraço.

Cristiano Contreiras disse...

Muita gente já me recomendou, agora, sinceramente, após seu texto minucioso, me interessei mais pela obra - parece ser intensa! abs

Adecio Moreira Jr. disse...

Putz, assistimos, escrevemos e demos nota máxima para o mesmo filme!

De fato é sensacional, e a cada dia que passa mais fã eu fico de Tilda. Ainda não vi as outras principais concorrentes (ou melhor, vi a performance de Viola) das possíveis candidatas ao Oscar, mas acho dificílimo encontrar alguma que faça um trabalho tão intenso e complexo quanto o que Tilda faz aqui.

Muito bom mesmo.

Emmanuela disse...

Oi Gabriel!

Aprecio muito os comentários que você deixa lá no cinema pela arte!

Admito que estou em falta com você pois o tempo está muito curto.

Esse filme está dando o que falar! Vou procurar vê-lo para melhor comentar.

Um abração!

Kamila disse...

Estou ansiosa para assistir a este filme, não só por causa das grandes críticas que ando lendo, mas especialmente por causa do fato de que o roteiro retrata um lado diferente da situação dos assassinos solitários e, principalmente, por causa da elogiadíssima atuação de Tilda Swinton.

Equipe Cinema Detalhado disse...

Assisti este filme e é incrível! A Tilda dá um show de atuação, mas o Ezra é demais também. Eu indico demais também!

Estamos seguindo!!! Parabéns pelo Blog!

Rodrigo Mendes disse...

Belíssimo texto analítico Gabriel, parabéns!
Vou com vontade e ver o filme. Também pelo trailer e algumas cenas que pude conferir de Tilda, sensacional.

Abs.

Júlio Pereira disse...

Tomei certa birra com Precisamos Falar Sobre Kevin. Inclusive, fiz uma campanha com amigos, "Precisamos Falar Sobre Outro Filme". Houve uma época que em todos os blogs lançaram críticas desse filme. Não vi ainda, mas, agora que isso passou, morro de ansiedade pra assistir. Sua análise foi, de longe, a melhor que li sobre o filme. Fiquei com mais vontade ainda. Tilda Swinton é de outro mundo, né?! Um monstro da atuação!