Há tempos que, em virtude do sistema, o homem se tornou completamente descartável, apenas mais um produto, fruto da concorrência desonesta e da especialização trabalhista. Ainda há quem tente burlar essa crueldade baseada numa cadeia já criada antes mesmo do nascimento. Nosso destino já está decidido, já que viveremos escravos do capitalismo até o fim, trabalhando, ganhando dinheiro, gastando e trabalhando, num círculo vicioso, até nos tornarmos absolutamente inúteis. O fato de viver dos sonhos constituí um fator quase fantasioso para a realidade, já que a atitude escapista deles é algo tão inconsciente e íntimo que quase é esquecido por quem se aliena todo dia para não ser esmagado pela crescente evolução. Como os sonhos sobrevivem em decorrência da realidade? O embate épico entre ambos é claro e perdura ao passar do anos. O que David Lynch faz nessa obra é acentuar o contraste entre a dimensão dos sonhos e a realidade crua. Qual é mais agradável para o protagonista, qual é mais agradável para o público?
Uma mulher (Laura Harring) acaba de sofrer um acidente de carro na famosa rodovia Mulholland Drive. Ela, como a única sobrevivente da tragédia, sai desorientada para Hollywood com uma sequela: ela não consegue se lembrar de nada anterior ao acidente. Com essa sua amnésia, ela entra numa casa qualquer e acaba ficando por lá, dormindo e esperando que a memória volte. Nessa mesma residência, Betty Elms (Naomi Watts) vai morar, para tentar fazer seu sonho de ser uma atriz reconhecida se realizar. Ao conhecer a mulher, que assume o nome de Rita, ambas procuram saber mais sobre o que aconteceu antes da colisão, já que a bolsa da mulher misteriosa contém uma chave azul, além de milhares de dólares. Ao mesmo tempo, o diretor Adam Kesher (Justin Theroux) tem de resolver um impasse na escolha do elenco em seu novo filme.
O que observamos nessa primeira parte do filme é uma cidade composta inteiramente de sonhos. Os sonhos são bastante importantes para o funcionamento de Hollywood, os habitantes de lá são movidos por eles. Vemos, já no início do filme, a confiança e o medo baseados nas fantasias produzidas pelo subconsciente por vários exemplos, que após algum tempo retornam em outras cenas. David Lynch é esperto, tudo o que ele joga na tela tem um motivo para estar ali e nenhum personagem sofre com o desuso de sua imagem na duração da obra. Em meio a contrastes de personalidades e um aprofundamento dos protagonistas, somos apresentados a uma situação principal. Betty chega em Hollywood para realizar seus desejos. O principal sonho dessa aspirante à atriz é ter seu rosto nas telas de cinema, assim como sua tia, a famosa atriz Ruth Elms. E Betty se mostra brilhante. Uma ótima atriz, uma ótima amiga, divertida, com soluções sempre úteis, com uma força de vontade única, com personalidade para ser o centro das atenções naturalmente, com coragem e atitude. Isso é realmente algo natural saindo dessa menina que se destaca como o cúmulo da perfeição em caráter? Betty é necessariamente a mocinha? O filme apenas confirma...
Como um contraponto à personalidade da anfitriã, Rita se mostra a desprivilegiada. Ela é confusa, ela é incapaz de realizar qualquer tarefa sozinha, ela depende de Betty para tudo, ela se mostra o elo fraco, a medrosa, a perseguida, a duvidosa, a misteriosa. Todas as desgraças caem em Rita e toda a história dela não desanima Betty, apenas a faz viver como se ela estivesse dentro de um filme policial o tempo inteiro. Não há como perder o pique diante da história das duas, por mais trágica que seja não saber absolutamente nada do próprio passado. Lynch, porém, faz tudo calculado em sua estratégia para transformar Cidade Dos Sonhos numa obra sem igual. Jogando na tela várias pistas para a compreensão do que está por vir, ele mascara uma história contendo velhinhos maliciosos, um monstro escondido atrás de uma lanchonete, um caubói filósofo e uma atriz de cinema feita sob medida na trama da busca pela memória. Não se engane, tudo o que você vê, por menos lógico que seja, vai ser usado enquanto o filme estiver rodando. Exatamente como Magnólia, de Paul Thomas Andersson, fez em 1999 para explicar através de metáforas seu final dúbio.
Silencio. No hay banda. No hay orquestra. Prepare-se para a reviravolta. Não há como acreditar em tudo o que se vê, especialmente quando você se encontra num ambiente feito inteiramente por sonhos. O diretor grita isso para seu público confuso após a rede de tramas, que antes parecia tão correta e desfeita, e se mostra mais emaranhada do que nunca. E isso resulta numa explosão de imagens e informações novas, jogadas com a mesma intensidade das já mostradas na primeira parte do filme. Não se pode comparar um ambiente fantasioso com um ambiente real. Por incrível que pareça, os sonhos são mais reais do que a realidade. Então entramos no psicológico. Freud disse que tudo o que vemos fica armazenado em nosso inconsciente, principalmente as experiências traumáticas, as que queremos esquecer. Porque não as mudamos? Porque não fazemos igual aos românticos literários e procuramos uma evasão em nossos sonhos? Nada melhor do que fantasiar, nada pior do que viver. Enquanto a realidade pode ser fria demais para se aguentar, nós manipulamos os sonhos de acordo com nossas vontades reprimidas. Nós escolhemos a história. Nós decidimos a personalidade de cada um, nós decidimos nossa própria personalidade, nós decidimos nomes, lugares, situações e consequências. Nós decidimos nossa própria realidade. E quando você pode escapar da hostilidade crua que é a vida, quem vai querer enfrentá-la?
Após chocar toda uma lógica com seu contraponto e apresentar um filme que se transforma constantemente, de linearidade para flashbacks, de uma fotografia clara para um escuro íntimo, de personalidades alegres para depressivas e culpadas, Cidade Dos Sonhos permanece ainda como obra para o entendimento humano. Uma vida pode ser retratada inteiramente no filme, com exemplos claros de desilusões amorosas, abuso do poder, dupla personalidade, inveja, ciúmes, tristeza e loucura. O que menos esperam é que numa cidade feita inteiramente de sonhos, a realidade se esconde na forma do que menos esperamos, seja uma apresentação que revela todo o caráter da trama, seja um monstro, mas um monstro real esmagado pela finitude imaginária.
Quando haverá outra obra que caracterize tanto uma cidade de sonhos e que consiga juntar isso com ambições insanas e com a verdadeira faceta escondida atrás da fantasia? David Lynch cria uma brincadeira baseada num contraste entre a consistência de um universo onírico e o pesadelo da insanidade real, tudo com base num psicológico que procura alguma forma de catarse que não se baseie na realidade, mas nos sonhos. E seu quebra-cabeça ainda consegue ser interessante ao se montar, pois uma peça pode encaixar em dois lugares diferentes. Cidade Dos Sonhos é um filme para se assistir mais de uma vez, sempre que possível, para novas interpretações serem abertas, novos aspectos serem descobertos, e que o público se sinta cada vez mais um personagem da rede de mentiras e cada vez menos um espectador. Aqui, a quarta parede deve ser quebrada, pois o filme não é para se digerir racionalmente, mas se sentir.
NOTA: 10
8 comentários:
Mais um pra minha (imensa) lista...
Tô com ele em casa já. Sempre quis ver. Abraços.
Esse filme é mágico. Roteiro perfeito, insano e cruel, como a vida de todos nós.
Obra-prima de um diretor genial, quando está inspirado.
Também quero muito ver este filme, é um daqueles polêmicos que despertam diversas opiniões.
Suas postagens estão cada vez melhores!
Foi a Obra-prima de David Linch, na minha opinião!
Tenho q assistir!!! Adoro David Lynch hahaha
O filme é essa mistura mesmo de sentidos, desejos, sonhos, percepções e realidades dentro de sonhos, e vice versa. É pra SENTIR, isso mesmo. E seu texto, excepcional, mostra bem questões e indagações desse primoroso trabalho de Lynch!
parabéns! abs
A primeira vez que eu vi não tinha entendido direito, faz um tempão, muita informação, mas mesmo assim fiquei encantado com o roteiro...!! So o compreendi perfeitamente na releitura...vou confeiri mais vezes, teu texto deu vontade!!!
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