Um filme de Peter Kosminsky com Ralph Fiennes e Juliette Binoche.
Há um ponto limite para os conflitos de um indivíduo, um ponto onde ele não consegue mais aguentar seus transtornos emocionais e morais se chocando a cada ato. Esse ponto é, literalmente, o inferno, um local doloroso onde o físico e o mental se unem para atordoar uma mente. Como aguentar a dor da paixão lícita? Como aguentar a perda do amor proibido? Como aguentar ambos? O romance dramático de Emily Brontë é um ensaio para todas as dores, que se contrapõem desde a intuição inconsciente humana até a moral externa ao indivíduo. E é nessa atmosfera constante de erros morais que Peter Kosminsky cria sua adaptação à esse clássico que exala razão e sensibilidade por trás de atos.
Na Inglaterra do século XVIII há uma propriedade no Morro dos Ventos Uivantes pertencente à família Earnshaw. O patriarca da família (John Woodvine), um dia, traz um garoto cigano que andava sem rumo pelas ruas e diz que o adotou, dando-lhe o nome de Heathcliff (Ralph Fiennes). Aos poucos ele começa a se sentir mais parte da família, por mais que o filho mais velho, Hindley Earnshaw (Jeremy Northam), nutra um ódio provindo de uma profunda inveja pelo menino adotado. Paralelamente, sua ligação com a filha mais moça, Catherine Earnshaw (Juliette Binoche), se torna cada vez mais latente. Quando o pai morre, Hindley assume a propriedade e coloca Heathcliff em seu devido lugar, o que lhe dificulta sua história amorosa com Catherine.
Entre a diferença de classes e a mazela das origens, o amor de Catherine com Heathcliff é uma coisa improvável para os padrões da sociedade britânica da época. Não se pode esquecer que não havia tanto liberdade na época do livro de Emily Brontë quanto atualmente. Heathcliff é a prova disso, do preconceito e da amargura consequente. Ralph Fiennes interpreta com uma força intensa seu personagem, lutando a cada hora por Catherine como se ela fosse sua própria vida. Mas, o amor dele é tão intenso que ele é incapaz de não sentir ciúmes, inveja, de não tratar Catherine como uma posse. Talvez isso se explique por sua origem cigana, e a entrada nesse mundo novo e idealizado do Morro dos Ventos Uivantes é a entrada para sentimentos novos em sua vida. O toque de um garoto que não teve nada com uma ponta do luxo da aristocracia é o bastante para se viver em sonhos. A volta ao preconceito de antes é o bastante para ele começar a sentir coisas novas por Catherine. Aquela menina que tanto lhe proporcionou e recebeu amor agora se volta contra ele, como isso se explica? A saída de Catherine de sua casta inocência para uma idade onde começa a frequentar a sociedade não modificou apenas suas ações, modificou o espírito inteiro de Heathcliff. A perturbação na alma deste provém de modificações daquela, os dois estão ligados de uma forma maior que a física. Por mais que um abismo de normas os separe, nunca se pode pensar em Catherine e em Heathcliff como almas distintas - são a mesma pessoa no fim das contas, um manipulando o outro para o bem ou para o mal, mas nunca satisfeitos no fim das contas. No fim das contas, Heathcliff se tornou não um carrasco, mas uma vítima. Mais perigoso do que um homem amargurado é um homem apaixonado.
Em contraponto a essa obsessão amorosa de Heathcliff, há Catherine, interpretada pela sempre ótima Juliette Binoche. Os olhares da menina provocante, as risadas despreocupadas da garota rica, o modo como ela trata Heathcliff num momento como se ele fosse uma diversão temporária e no outro como se ele fosse uma substância necessária para a própria vida, Binoche consegue adaptar tudo a sua personagem. Os dois, que contracenariam juntos mais tarde no ganhador do Oscar O Paciente Inglês, possuem afinidades em suas cenas. Com a relação dos dois, aos poucos fica improvável pensar no personagem de Fiennes sem Binoche e em Binoche sem Fiennes. Um necessita do outro, e só não necessitam quando tentam provar o errado para si mesmos. É um conflito interno infinito. Ou eles se separam e vivem num inferno da alma, ou eles se juntam e são abominados pelas regras da sociedade inglesa. Na difícil situação, ainda há espaço para Catherine mostrar ao espectador sua personalidade. Como herdeira de uma rica propriedade, ela viveu despreocupada até o momento que teve de fazer sua escolha difícil: ela pode levar em frente sua paixão ardente e se juntar a Heathcliff, com a desaprovação de todos os meios sociais que frequenta. Ou ela pode abandonar seu sentimento e levar adiante uma existência frívola movida pela união de bens e de um nome de peso. O que ela não contava com sua decisão é que, assim como Heathcliff, ela não pode viver sem sua alma gêmea. Sua vida só retorna quando ela vê um sinal de Heathcliff novamente em sua vida; e sua vida só acaba novamente quando ela vê que é impossível manter sua relação com o amante. A partir dessa mudança, é previsível o trágico destino da errante Catherine, uma mulher que não pôde lutar contra seus sentimentos mais fortes e se entregou, à contragosto, a uma paixão suicida.
Aos poucos, a paixão corrompe tanto a vida dessas almas que cada movimento de Heathcliff é direcionado somente à Catherine, e vice-versa. Mas como escolher entre dois destinos fatídicos, a morte e o sofrimento? Catherine teve suas razões para escolher sofrer, do mesmo modo que Heathcliff obteve o que era necessário para sentir o sofrimento da amada. O que houve foi exatamente o inverso. Enquanto Heathcliff sentia mais e mais a dor de Catherine, ele a amava mais. E, consequentemente, o odiava mais por infligir angústia à Catherine. Para representar essa paixão intensa e mórbida, nada melhor do que o cenário escolhido para ser o Morro dos Ventos Uivantes. Com uma fotografia clara iluminando cenários vazios até o limite de horizonte entre pedras, árvores e morros, o cenário possui um excesso de beleza natural para se contrapor à crueldade de um romance. O amor de Catherine e Heathcliff conta com uma pequena diferenciação da literatura, mas nada que possa comprometer o ritmo do filme. Falando nesse, as coisas acontecem realmente rápido demais. Isso pode dificultar um pouco em vivenciar o sentimento do casal principal, mas é só olhar na face de ambos: eles realmente se amam de um modo único. Eles se completam. Por mais que a vivência seja mais tocante, Morro dos Ventos Uivantes prega pela visão do romance. Um outro acerto da trama é a narrativa, que primeiramente mostra o futuro para depois retomar a história do princípio. Ela ativa a curiosidade do público em mexer com o sobrenatural e depois dar uma explicação para a história. Enquanto a narrativa conta seu romance, a trilha sonora de Ryuichi Sakamoto entra em cena como ponto de ebulição do drama. Deixa o nervosismo mais nervoso e a dor de Catherine mais real.
Desde o começo somos avisados que estamos prestes a visualizar uma obra dolorosa, que qualquer sinal de riso não deve ser levado à sério. O que se promete, se concretiza. Morro dos Ventos Uivantes não possui a certeza de um final feliz, mas há um romance em seu roteiro, um romance comprovado pelo verdadeiro significado de almas gêmeas. Catherine e Heathcliff estavam ligados pelo destino desde o começo. A vida de um só começou com a do outro, e a vida de um terminou com a do outro. Uma paixão que transpassou as barreiras metafísicas e que mostra a beleza até na maldade emocional. Uma pena que se restrinja a apenas um sentido e não tenha transpassado outras barreiras para marcar o público que o assiste.
NOTA: 8
Gabriel, não querendo ser chato. Você sabe que adoro teu blog, mas posso pedr um favor? Ponha um espaço de uma linha dentre os parágrafos, é que sempre me perco na hora de ler. Ai, sempre acabo lendo trechos em vez de aproveitar melhor o seu bom texto! rs Bem, fica a dica aí, espero não estar sendo chato...
ResponderExcluir"O morro dos ventos uivantes" não é o meu filme favorito. Mas é um filme considerável. A história é fenomenal e tem excelentes atuações. Mas, falou algo. Lembro que quando o assisti, achei que a história muito corrida e com um roteiro tão bom, acho que em diversas partes o filme ficou "raso" demais. Não entendo tanta admiração que alguns tem por esse filme. Mas é bom!
Abs ;)
Doloroso filme, adaptação perfeita da obra imortal de Bronte. Ao contrário do Alan, eu acho que o filme sabe muito bem pontuar tudo - personagens, destinos, narrativa coerente e ritmo eficiente. É tocante, é belo mesmo. Fiennes e Binoche se entregam, incondicionalmente e, aqui, funcionam bem mais que o superestimado "O Paciente Inglês".
ResponderExcluirAcho esse filme um dos melhores já feitos, entra no meu top 10, inclusive. A trilha de Sakamoto é uma coisa sinistra e impactante, ajuda na narrativa e no tom emocional.
Parabéns pelo texto!
PS: Concordo com o Alan, dê linhas ou parágrafos em seus textos, melhora na leitura. Abraço
É um drama sensível e doloroso com ótima interpretação do par central.
ResponderExcluirO filme tem pelo menos uma versão clássica com Laurence Olivier e Vivien Leigh, mas ainda não tive oportunidade de assistir.
Abraço
Gosto do filme, assim como do seu texto.
ResponderExcluirPorém, apesar do belo trabalho dos atores nessa produção, a versão clássica com Laurence Olivier ainda me encanta mais.
Cara, eu tenho um VHS até hoje, mas não é essa versão. É uma antiguíssima, em p&B, que veio em uma coleção da Caras há mais de uma década atrás.
ResponderExcluirMas este parece ser tão bom quanto, e faz jus acima de tudo, à belíssima obra de Brontë. Falando em família Brontë. Você já viu Jane Eyre?
Taí um filme que eu negligenciei por anos, e quando o vi, quase morri de raiva por não ter visto antes. Gosto DEMAIS dessa versão!
ResponderExcluirÉ meu filme preferido. Tanto que não consigo escrever sobre ele, rs. Um dia ainda vou tentar de novo...
ResponderExcluirÉ perfeito a quimica e atuação entre Binoche e Fiennes. HEathcliff é um personagem complexo, que Fiennes conseguiu interpretar muito bem, mto bem adaptado do livro, diferente da versão antiga que fizeram.
Wuthering Heights é uma história linda de amor desenfreado, que por outros sentimentos frivolos, ocasionou tragédias e amarguras.
Bjo!
PS. Vc esqueceu do meu selo né? =/